São Paulo, terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Sem mudar as palavras


A luta em curso é uma luta nova, entre Israel e Irã, que só está nos seus primeiros passos

INEVITÁVEL: ISRAEL é sempre um sucesso de bilheteria. Na passada semana, eu poderia ter escolhido outro tema qualquer. Poderia ter escolhido, por exemplo, o que sucedeu no Congo: uma guerra brutal que ceifou 1 milhão de vidas. E que, já depois do cessar-fogo, continua a matar: uma média de 30 mil por mês. Essa guerra mundial africana já fez entre 3 a 6 milhões de mortos.
Mas o mundo não quer saber do Congo para nada. Não há judeus no Congo. Curioso: uma catástrofe sem precedentes está a suceder em África e o mundo está com os olhos postos em Gaza.
É por isso que regresso ao meu artigo da semana passada, que praticamente rebentou com o meu e-mail e com o Painel do Leitor desta Folha.
Não respondo aos insultos e aos elogios, que chegaram em partes iguais. Ignoro os primeiros, agradeço os segundos. Mas gostaria de responder a críticas racionais, articuladas por pessoas racionais. E a principal crítica que me foi dirigida lida com a parte da história que eu, alegadamente, teria ignorado: eu começava a minha narrativa em 1967 porque esse é o ano da ocupação de Gaza e da Cisjordânia.
Alguns leitores disseram que eu esquecia o que sucedera antes, ou seja, o "roubo", pelos judeus, de terra árabe em 1948. Alguns leitores tiveram mesmo a gentileza de me enviar um artigo de Robert Fisk, publicado na Folha (edição de 31/ 12/ 2008), em que o jornalista britânico afirmara com ironia: as populações de Gaza nem sempre viveram em Gaza. Verdade que uma crônica de jornal não é uma tese de doutorado. Eu sei, porque já escrevi ambas.
Mas mesmo no espaço limitado de uma crônica, eu pensava que os meus críticos jamais comprariam a propaganda antissemita que faz dos judeus de 1948 puros extraterrestres que desceram da nave espacial para ocupar a Palestina e expulsar os árabes lá presentes.
Uma mentira infame. Para começar, a presença judaica na região foi permanente ao longo dos séculos, mesmo depois da destruição do Templo em 70 d.C. E, para ficarmos na história moderna, a maciça imigração de judeus para a Palestina a partir de 1880, altura em que muitos abandonaram a Europa e a Rússia e compraram legalmente terras na região, bastaria para desfazer a primeira mentira: a mentira dos extraterrestres. A criação do Estado de Israel expressa essa presença multissecular. Mas seria o fim da Primeira Guerra, e a consequente desagregação do Império Otomano, que tornaria Israel possível: se árabes e judeus coexistiam na Palestina, um plano de partição, supervisionado pelas Nações Unidas, propunha-se garantir a ambos os povos dois Estados independentes. E se a Transjordânia ocupava já 80% do Mandato Palestino, árabes e israelenses partilhariam a terra estante.
Fatalmente, os árabes mostraram-se incapazes de aceitar a existência do Estado judaico e, logo em 1948, iniciariam uma guerra de extermínio que está na origem do problema dos refugiados palestinos. Robert Fisk tem razão quando afirma que os habitantes de Gaza nem sempre viveram em Gaza. O que Fisk esquece, ou propositadamente ignora, é a responsabilidade árabe na criação do problema dos refugiados. Como esquece, ou ignora, que em 1948 Israel receberia 600 mil judeus expulsos ou perseguidos pelos países árabes. A grande diferença é que Israel recebeu os seus refugiados e os países árabes ignoraram-nos. Até hoje.
A tragédia corrente no Oriente Médio não é explicável sem esse primordial antissemitismo árabe, no qual teve papel de destaque o mufti de Jerusalém, Al Husseini (um amigo pessoal do regime nazista). Foi esse antissemitismo crescente que condenou a região a uma guerra sem fim. Mas a tragédia também não é explicável sem um pormenor final.
Nos relatos habituais, o conflito em Gaza tem sido retratado com as lentes do passado: uma luta entre Israel e os palestinos, em que Israel se recusa a aceitar a solução dos dois Estados. Não vale a pena perder um minuto de tempo a relembrar a oferta de Ehud Barak em Camp David (que Arafat recusou) ou o pormenor, insignificante, de que o Hamas se recusa a aceitar a existência de judeus na Palestina, tal como está na sua Constituição.
Fico-me pelo básico: a luta em curso é uma luta nova, não velha; tal como sucedeu em 2006, no sul do Líbano, é uma luta entre Israel e o Irã que ainda só está nos primeiros passos. Minha tentação era terminar, dizendo: quem viver, verá. Mas, se o Irã chegar à bomba nuclear, o mais certo é no futuro já não restar nada para ver.

jpcoutinho@folha.com.br



Texto Anterior: Crítica: Filmes abordam amor, pecado e moralismos
Próximo Texto: Globo de Ouro consagra "Slumdog" e Kate Winslet
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.