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MARCELO COELHO
Macarthismo das miudezas
Talvez exista, por trás do escândalo dos cartões, longa e envergonhada história de amor
LEIO, ESTARRECIDO, as últimas
notícias de Brasília. Determinado ministro gastou R$ 8 comendo tapioca. Usou-se cartão corporativo para reformar uma mesa
de sinuca.
A Radiobrás gastou R$ 36 numa
loja de colchões. A explicação: era lona para cobrir um estúdio móvel nas
transmissões do Carnaval.
Fico estarrecido, mas não com as
despesas. Não com a chamada farra
dos cartões corporativos. Fico estarrecido com a importância que se dá a
tudo isso.
Não posso entender como um país
se esquece de todos os seus problemas, e até mesmo de casos graves de
corrupção, para discutir o fato de
que o ministro dos Esportes usou
um cartão corporativo para comer
tapioca no café da manhã.
Abusos certamente existem. O
maior deles foi o da ministra da
Igualdade Racial, Matilde Ribeiro,
que teve de deixar o cargo. Fez gastos em free shop e mesmo nas férias
recorreu ao dinheiro público para o
aluguel de carros.
Foi fácil verificar isso no Portal da
Transparência. Mas, como em toda
corrida do ouro, o garimpo de notícias logo se esgota, e irregularidades
microscópicas são esquadrinhadas
como se estivéssemos diante de um
novo mensalão.
Mas me parece nítida a desproporção entre o que foi aquela crise e
o caso dos cartões. O mensalão envolvia bancos, publicitários, partidos e governo num sistema de financiamento político que tinha sérias
repercussões do ponto de vista institucional e ideológico. Trazia a ameaça da perpetuação no poder do "núcleo duro" do PT e resultou na completa derrocada do discurso ético do
partido.
Uma CPI para investigar os gastos
da cozinha presidencial e dos seguranças de Lurian talvez chegasse,
nunca se sabe, a um grande escândalo. Mas, como os gastos de Fernando
Henrique seriam também investigados em represália, tudo já se arranja para evitar o aprofundamento
da questão.
O rumo das investigações tende,
assim, a desembocar em algum funcionário administrativo de pouca
importância, que pagará pelo erro
de ter gasto dinheiro público em coisas como o forro de uma mesa de sinuca.
Se ao menos a mesa de sinuca fosse dele... mas estava lá no próprio
ministério! E o que dizer do reitor de
uma universidade federal que teve
de vir a público, com direito a fotografia e entrevista, simplesmente
porque levou uma comitiva de convidados estrangeiros a um restaurante de luxo? Só o mais extremo patrulhamento moralista haveria de
tratar o episódio como um escândalo nacional.
Com esse macarthismo das miudezas, que pode atingir qualquer administração, petista ou tucana, surge mais um fator de paralisação das
atividades do Congresso, que devia
estar discutindo a reforma política e
a tributária. No fundo, talvez seja
uma forma de fugir de um debate
complexo, que ninguém se dispõe
muito a acompanhar.
E talvez também exista, por trás
do escândalo dos cartões, uma longa
e envergonhada história de amor.
Tucanos e petistas possuem muito mais pontos em comum do que de
discordância. Uma prévia desse
complexo filme francês está sendo
ensaiada no Estado de Minas Gerais,
com o governador Aécio Neves e o
prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel.
Qualquer aproximação política
entre PT e PSDB se reveste, entretanto, das cores de um escândalo inconfessável. Programas de governo
semelhantes encontram bases sociais em franca divergência; os eleitores de um partido têm ojeriza aos
políticos do outro, e a disputa eleitoral em cada cidade não obedece ao
consenso programático existente no
plano federal.
Dada a falta de nomes fortes no
PT, nem chegaria a ser ilógico se
uma candidatura de Aécio Neves tivesse um matiz mais governista do
que de oposição. O próprio Serra
discorda menos de Lula do que a
"banda de música" que derrotou a
CPMF.
O conflito entre PSDB e governo
tem, entretanto, de continuar, ao
preço de escândalos e denúncias de
pouca relevância, mas de fácil consumo na opinião pública. Cria-se então uma CPI em torno de trocados,
de tapiocas e colchões.
Trata-se do clássico caso em que
os agentes de um processo político
perdem a racionalidade e tornam-se
presos a um discurso em que já não
acreditam.
Colchões? Mesas de sinuca? Jantares à luz de velas? As vestais enrubescem. Nunca foram disso.
coelhofsp@uol.com.br
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