São Paulo, terça-feira, 13 de março de 2001

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CINEMA

Patricia Civelli tenta restaurar acervo que inclui "Destino em Apuros"

Primeiro longa em cores do país está na UTI

Divulgação
Cena de "Destino em Apuros", primeiro longa brasileiro em cores, com Paulo Autran (de máscara)


JOSÉ GERALDO COUTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um patrimônio cultural de valor inestimável corre o risco de virar pó em pouco tempo. Não se trata de uma igreja barroca, nem de um sítio arqueológico pré-histórico, e sim de filmes produzidos no Brasil há menos de 50 anos pelo cineasta e empreendedor ítalo-brasileiro Mario Civelli (1923-93).
Entre as preciosidades ameaçadas, estão o primeiro longa-metragem colorido brasileiro, "Destino em Apuros", e o mais antigo filme sobre futebol ainda existente, "O Craque", ambos de 1953.
O primeiro, dirigido pelo também italiano Ernesto Remani, acumula a honra de ser uma das primeiras fitas estreladas por Paulo Autran, que encarna o próprio Destino. O ator dava o filme por perdido, mas no ano passado a filha de Mario Civelli, Patricia Civelli, descobriu com um colecionador uma cópia completa que comporta restauração.
Paulo Autran disse à Folha que ganhou "muito bem" para fazer o filme: "O Civelli me ofereceu o mesmo ordenado que a Vera Cruz pagava ao Anselmo Duarte, o maior galã da companhia".
O ator se lembra de Mario Civelli como "um grande entusiasta do cinema". Segundo ele, "Destino em Apuros" era uma comédia fantástica em que o Destino (o próprio Autran) troca inadvertidamente com um jovem (Hélio Souto) uma pasta com documentos sobre a vida dos indivíduos.
Para dirigir a fotografia em cores, chamou-se o fotógrafo norte-americano H. B. Corell.
"Eu lembro que havia uma cena em frente ao cemitério da rua Cardeal Arcoverde, em Pinheiros, outra no Museu do Ipiranga feericamente iluminado e outras num cenário colossal que era o escritório do Destino", diz.
Segundo o ator, o tal escritório ficava no alto de um prédio de 20 andares, mas o edifício usado para fazer as tomadas externas era o do Instituto Biológico, na Vila Mariana, que só tem cinco. "Com isso, o Destino (ou seja, eu) olhava pelo 20º andar de um prédio de cinco andares, o que acentuava involuntariamente o tom fantástico da trama", diverte-se Autran.
"Havia uma fala minha no filme que eu nunca mais esqueci", diz o ator. "Eu dizia: "Gosto de tomar chocolate porque é a única bebida doce extraída de um fruto amargo". Ou seja, o roteirista se esqueceu do chá, do café etc."
"O Craque", em que o ator Carlos Alberto interpreta o jogador de futebol Julinho "Joelho de Vidro", mostra um evento cada vez mais raro nos dias de hoje: uma vitória do Corinthians. O jogo foi um amistoso contra a seleção do Uruguai, no Pacaembu.
Contracenam com Carlos Alberto astros corintianos da época, como Claudio, Luizinho e o goleiro Gilmar, que seria campeão mundial em 58 e 62. A direção é de José Carlos Burle e o roteiro é de Alberto Dines.
Segundo Patricia Civelli, produtora de rádio, TV e publicidade que cuida do acervo do pai desde a morte deste, há oito anos, esses filmes "estão na UTI", ou seja, precisam ser restaurados com urgência para não desaparecer.
Em condições tão críticas quanto as de "O Craque" e "Destino" estão os longas "Chamas no Cafezal" (José Carlos Burle, 54), "A Sogra" (Armando Couto, 54), "Fatalidade" (Jaques Maret, 53) e "Uma Vida para Dois" (Armando Miranda, 53). Todos foram produzidos por Mario Civelli e fazem parte do acervo da Multifilmes, empresa produtora paulista que ele criou em 52 (leia ao lado).
Em estado um pouco menos precário, mas também necessitados de restauração, estão dois documentários do próprio Civelli, "O Grande Desconhecido" (56) e "Rastros na Selva" (58).
O primeiro deles registra costumes e paisagens do interior brasileiro mais selvagem e foi premiado como melhor documentário no festival de Karlovy-Vary, na então Tchecoslováquia.
"Rastros na Selva" documenta a expedição que percorreu o Brasil para capturar os primeiros animais que chegaram ao Jardim Zoológico de São Paulo.
Patricia Civelli busca recursos para recuperar esses e outros títulos da Multifilmes, a exemplo do que fez com a comédia "É um Caso de Polícia" (1959), de sua tia Carla, irmã de Mario Civelli (leia também nesta página).
Além disso, Patricia pretende restaurar 4.070 fotos relativas à Multifilmes, abarcando fotografias de filmagem, de matérias jornalísticas e cartazes.
"Falta apoio dos órgãos públicos para esse tipo de trabalho", diz Patricia. "O governo manda recorrer à Lei Rouanet, mas a cada ano cria novos formulários, aumenta a burocracia, faz a gente gastar mais dinheiro."
Segundo ela, a recuperação de um longa como "O Craque" demanda entre R$ 80 mil e R$ 100 mil. "São sete meses de trabalho de restauração quadro a quadro."
Patricia destaca a importância do acervo Multifilmes não só para a história do cinema, mas para a própria memória do país. "Estão se perdendo imagens preciosas, que mostram desde a Serra Pelada antes do garimpo até bairros paulistanos totalmente diferentes do que são hoje."



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