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RODAPÉ
Um documento de barbárie
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Juliano Garcia Pessanha é
autor de um livro chamado
"Certeza do Agora'; ele fala de uns
sufocamentos muito parecidos
com os meus. A nossa diferença,
além de ele ter vocação pras transcendências e eu, pros assassinatos, são os nomes que batizamos
estes sufocamentos ou "inhacas".
O que eu, por exemplo, chamo de
periquitos claustrofóbicos, ele denomina "superfície iluminada do
mundo administrado". Juliano
quer/queria escapar destes abismos para poder encontrar a "consangüinidade, o mistério das coisas" -inventou um Gombro que
é ele mesmo e é uma homenagem
a Witold Gombrowicz para tentar
chegar lá. Eu penso, grosso modo,
que nossos abismos são os mesmos e que não há escapatória."
Esse parágrafo dá início a um
texto impressionante, publicado
em edição recente da revista "Ficções" (número 12). É uma carta
escrita por Marcelo Mirisola ("O
Azul do Filho Morto", "Bangalô")
para Juliano Garcia Pessanha (autor da trilogia "Sabedoria do
Nunca", "Ignorância do Sempre"
e "Certeza do Agora")
Já tive a oportunidade de escrever aqui sobre os dois. Mas a
"Carta para Gombro" confirma
algo que os leitores talvez tenham
intuído e que agora se explicita: a
afinidade entre a escrita escatológica de Mirisola e as meditações
existenciais de Pessanha.
Em geral, cartas de escritores
têm valor documental: estabelecem pontes entre obras consolidadas e alimentam o biografismo.
Obviamente, não é isso que ocorre entre Mirisola e Pessanha, que
estão muito longe de um reconhecimento que justifique a bisbilhotice epistolar. Além disso, não há
propriamente correspondência
entre ambos, mas uma espécie de
carta aberta, endereçada mais ao
leitor do que ao destinatário. Se a
"Carta para Gombro" tiver valor,
será não como documento de cultura, mas como documento de
barbárie.
Os livros de Pessanha misturam
narrativas, aforismos e ensaios,
mas seu tema é sempre o sujeito
alienado de si e do mundo, massacrado por um olhar (o "minotauro gelado da objetivação") que
o reduz a uma vida protocolar.
Sua escrita é atravessada por uma
nostalgia do ser autêntico (que resiste ao império do instituído) e
está repleta de referências eruditas a Hölderlin, Heidegger e Blanchot.
Mirisola parece estar no extremo oposto. Reduz suas personagens a fetiches pornográficos e a
um apego masoquista aos ícones
da cultura "trash": sua enciclopédia são as novelas de TV e os programas de auditório.
A "Carta para Gombro", porém, cancela a facilidade dessa dicotomia. "De nada vale o escritor
produzir espelhos, duplicá-los e
enfeitar-se com o próprio cérebro, se o gênio criador/criatura
não for uma fraude e a fantasia...
ou, em última análise, o desastre
de si mesmo", escreve Mirisola.
Ou seja, as transcendências de
Pessanha correm o risco de ser
mero artefato de fruição artística,
uma prótese literária da existência, não muito diferente do universo do consumo e da cultura de
massa. Por isso, em "Certeza do
Agora", ele escreve uma "Heterotanatografia", reverso e revés de
autobiografia em que o "alter
ego" Gombro encarna uma infância encarcerada no "lugar-família" e na "época-colégio", prenúncios do "lugar-presídio" e do "lugar-manicômio".
Mirisola detecta algo que lateja
nas iluminações agônicas de Pessanha: o recurso à escrita autobiográfica como última esfera inalienável do sujeito, antes de sua
apropriação pela fala e pelo desejo
do outro (seja este a "entidade-mãe", o discurso institucional ou
mesmo um saber intelectual supostamente emancipador).
Não se trata de autobiografia no
sentido convencional, em que o
indivíduo é romanceado, mas o
contrário: essa vivência torturada
é uma espécie de interdito da estetização, da pacificação da dor pelo
"constructo" literário. Mesmo
quando cria personagens, Pessanha solta na rua sonâmbulos que
giram em torno das mesmas obsessões, sempre observados por
um "olho-Auschwitz".
Mas a acuidade da leitura de Mirisola tem um outro significado.
Se toda teoria é um fragmento de
autobiografia (Valéry), muito do
que está na "Carta para Gombro"
diz respeito ao autor de "Bangalô". "Você soube reconhecer as
traições e falcatruas que me obrigaram a engendrar minha autoflagelação biográfica, chamada "O
Azul do Filho Morto'", escreve
Mirisola. Ou seja, os "periquitos
claustrofóbicos", "inhacas" e
"abisminhos" em que ele chafurda são o avesso chulo de Pessanha
-e só isso deveria bastar para
mostrar que, por mais engraçadas
e anárquicas que sejam, suas perversões ("eu discorria sobre orquídeas e grelos cauterizados")
são deformidades de um "eu" que
agoniza conosco dentro da gaiola
da vida doméstica.
A "Carta para Gombro" pode
passar despercebida numa revista
que traz ótimas reportagens, como uma entrevista com André
Sant'Anna e um texto de Silviano
Santiago sobre "Budapeste", de
Chico Buarque.
Mas é assim mesmo que funciona a literatura daqueles dois escritores: como uma carta-bomba
deixada na caixa do correio,
transformando fracassos existenciais num grito de horror que nos
salva de embustes retóricos.
Ficções Revista de Contos
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 15 (96 págs.)
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