São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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RODAPÉ

Um documento de barbárie

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Juliano Garcia Pessanha é autor de um livro chamado "Certeza do Agora'; ele fala de uns sufocamentos muito parecidos com os meus. A nossa diferença, além de ele ter vocação pras transcendências e eu, pros assassinatos, são os nomes que batizamos estes sufocamentos ou "inhacas". O que eu, por exemplo, chamo de periquitos claustrofóbicos, ele denomina "superfície iluminada do mundo administrado". Juliano quer/queria escapar destes abismos para poder encontrar a "consangüinidade, o mistério das coisas" -inventou um Gombro que é ele mesmo e é uma homenagem a Witold Gombrowicz para tentar chegar lá. Eu penso, grosso modo, que nossos abismos são os mesmos e que não há escapatória."
Esse parágrafo dá início a um texto impressionante, publicado em edição recente da revista "Ficções" (número 12). É uma carta escrita por Marcelo Mirisola ("O Azul do Filho Morto", "Bangalô") para Juliano Garcia Pessanha (autor da trilogia "Sabedoria do Nunca", "Ignorância do Sempre" e "Certeza do Agora")
Já tive a oportunidade de escrever aqui sobre os dois. Mas a "Carta para Gombro" confirma algo que os leitores talvez tenham intuído e que agora se explicita: a afinidade entre a escrita escatológica de Mirisola e as meditações existenciais de Pessanha.
Em geral, cartas de escritores têm valor documental: estabelecem pontes entre obras consolidadas e alimentam o biografismo. Obviamente, não é isso que ocorre entre Mirisola e Pessanha, que estão muito longe de um reconhecimento que justifique a bisbilhotice epistolar. Além disso, não há propriamente correspondência entre ambos, mas uma espécie de carta aberta, endereçada mais ao leitor do que ao destinatário. Se a "Carta para Gombro" tiver valor, será não como documento de cultura, mas como documento de barbárie.
Os livros de Pessanha misturam narrativas, aforismos e ensaios, mas seu tema é sempre o sujeito alienado de si e do mundo, massacrado por um olhar (o "minotauro gelado da objetivação") que o reduz a uma vida protocolar. Sua escrita é atravessada por uma nostalgia do ser autêntico (que resiste ao império do instituído) e está repleta de referências eruditas a Hölderlin, Heidegger e Blanchot.
Mirisola parece estar no extremo oposto. Reduz suas personagens a fetiches pornográficos e a um apego masoquista aos ícones da cultura "trash": sua enciclopédia são as novelas de TV e os programas de auditório.
A "Carta para Gombro", porém, cancela a facilidade dessa dicotomia. "De nada vale o escritor produzir espelhos, duplicá-los e enfeitar-se com o próprio cérebro, se o gênio criador/criatura não for uma fraude e a fantasia... ou, em última análise, o desastre de si mesmo", escreve Mirisola.
Ou seja, as transcendências de Pessanha correm o risco de ser mero artefato de fruição artística, uma prótese literária da existência, não muito diferente do universo do consumo e da cultura de massa. Por isso, em "Certeza do Agora", ele escreve uma "Heterotanatografia", reverso e revés de autobiografia em que o "alter ego" Gombro encarna uma infância encarcerada no "lugar-família" e na "época-colégio", prenúncios do "lugar-presídio" e do "lugar-manicômio".
Mirisola detecta algo que lateja nas iluminações agônicas de Pessanha: o recurso à escrita autobiográfica como última esfera inalienável do sujeito, antes de sua apropriação pela fala e pelo desejo do outro (seja este a "entidade-mãe", o discurso institucional ou mesmo um saber intelectual supostamente emancipador).
Não se trata de autobiografia no sentido convencional, em que o indivíduo é romanceado, mas o contrário: essa vivência torturada é uma espécie de interdito da estetização, da pacificação da dor pelo "constructo" literário. Mesmo quando cria personagens, Pessanha solta na rua sonâmbulos que giram em torno das mesmas obsessões, sempre observados por um "olho-Auschwitz".
Mas a acuidade da leitura de Mirisola tem um outro significado. Se toda teoria é um fragmento de autobiografia (Valéry), muito do que está na "Carta para Gombro" diz respeito ao autor de "Bangalô". "Você soube reconhecer as traições e falcatruas que me obrigaram a engendrar minha autoflagelação biográfica, chamada "O Azul do Filho Morto'", escreve Mirisola. Ou seja, os "periquitos claustrofóbicos", "inhacas" e "abisminhos" em que ele chafurda são o avesso chulo de Pessanha -e só isso deveria bastar para mostrar que, por mais engraçadas e anárquicas que sejam, suas perversões ("eu discorria sobre orquídeas e grelos cauterizados") são deformidades de um "eu" que agoniza conosco dentro da gaiola da vida doméstica.
A "Carta para Gombro" pode passar despercebida numa revista que traz ótimas reportagens, como uma entrevista com André Sant'Anna e um texto de Silviano Santiago sobre "Budapeste", de Chico Buarque.
Mas é assim mesmo que funciona a literatura daqueles dois escritores: como uma carta-bomba deixada na caixa do correio, transformando fracassos existenciais num grito de horror que nos salva de embustes retóricos.


Ficções Revista de Contos
    
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 15 (96 págs.)



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