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BERNARDO CARVALHO
Quanta clareza podemos suportar?
Dependendo da época e da situação, o homem tolera pouca clareza, e não por muito tempo
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COMO JACKSON Pollock dez
anos antes, Frank O'Hara
(1926-66) também morreu
num acidente de carro. Era poeta e
crítico de arte. No número 19 da revista de poesia "Inimigo Rumor" (7
Letras/CosacNaify), que acaba de
chegar às livrarias, há um texto de
O'Hara sobre a "action painting"
(pintura de ação) de Pollock. A certa
altura, o poeta pergunta: "Quanta
clareza um ser humano é capaz de
suportar?". Dependendo da época e
das circunstâncias, não muita. E, em
geral, não por muito tempo.
A epígrafe com a qual O'Hara abre
o texto foi tirada de um ensaio autobiográfico do poeta russo Boris Pasternak e diz o seguinte: "Uma verdade universalmente reconhecida
muitas vezes tem de esperar por
uma rara ocasião, um golpe de sorte
que lhe sorria uma única vez numa
centena de anos, antes de achar uma
aplicação". A arte de Pollock é uma
dessas verdades.
Sem referência a imagens exteriores, dispersando a tinta com o pincel
no ar, em movimentos nervosos sobre a tela deitada no chão do ateliê,
Pollock fez uma revolução. A "realidade física do artista e sua ação para
expressá-la" passaram a se unificar
espiritualmente "em um todo que
prescinde da mediação da metáfora
ou do símbolo". Um raro estado de
clareza espiritual que todo artista
gostaria de alcançar, mas que apenas a vontade não garante: "O esforço para atingir esse estado é enorme
e excruciante, e, uma vez alcançado,
não é menos doloroso mantê-lo".
Muitas vezes, como diz Pasternak, é
preciso esperar uma centena de
anos.
Na pintura de Pollock, a ação passa a ser "imediatamente arte, não a
arte mediada pela vontade, por uma
postura estética". Ou seja, um estado em que a obra já não precisa se
explicar, se justificar ou dizer a que
veio: não eram as pinturas que haviam mudado, "o que mudara era o
mundo ao redor", escreve O'Hara.
Hoje, não é só a arte, perdida em
explicações capengas que tentam
dar sentido e sustentação à ausência
ou insuficiência de obra, mas o próprio pensamento (filosófico, social e
político) que, perplexo e constrangido pela incapacidade de dar conta do
presente por meio de certezas do
passado, se vê cada vez mais encurralado na sua impotência.
O intelectual que antes, enquanto
a crueza da realidade não o atingia
diretamente, pensava da boca para
fora, repetindo idéias recebidas e
bem-postas, uma vez confrontado
para valer com as contradições e a
violência da realidade, ou se cala,
sem saber o que fazer com antigos
dogmas, ou deixa cair a máscara e
passa a reproduzir o senso comum,
como se ceder a um sentimento corrente e a uma moral irrefletida fosse
sinal de recém-conquistada originalidade. Ou seja, se antes já era incapaz de produzir um pensamento
original, agora, quando mais precisa
intervir (e quando mais precisam da
sua intervenção), revela-se simplesmente incapaz de pensar. No pior
dos casos, rende-se ao perigo público das suas próprias limitações.
Há poucas semanas, num perfil
publicado pela "The New Yorker",
Paul e Patricia Churchland, professores de filosofia da Universidade de
San Diego, fascinados pela neurociência, antecipavam com entusiasmo o dia em que será possível prevenir o mal social, instalando mecanismos coercitivos no cérebro dos
maus elementos: ao menor sinal de
raiva no indivíduo considerado
anormal pela sociedade, o mecanismo o "derrubaria automaticamente
com uma boa dose de Valium".
Na adolescência, Paul Churchland
foi fã do escritor de ficção científica
Robert Heinlein, autor, entre outras, de uma fábula na qual os condenados de uma sociedade futura ou
aceitavam sofrer um "reajuste psicológico" ou eram confinados num
território murado, entre outros condenados que também não quiseram
se submeter à operação. E o que
mais incomodava Churchland na
história era o fato de o autor tomar o
partido dos personagens que se recusavam a "ter o cérebro convertido
ao normal".
A solução sonhada pelo casal
Churchland, em San Diego, tem cada vez mais defensores mundo afora. Gente que, acuada pela proximidade da barbárie, acaba inadvertidamente se tornando agente da sua
propagação, já que não tem mais
condições para refletir sobre o que
vê à sua volta, sobre suas causas e
eventuais soluções. Resta torcer para que os que ainda conseguem vislumbrar as conseqüências da fábula
escrita por Robert Heinlein continuem pensando. E que, se não for
possível atingir a curto prazo um estado de clareza espiritual equivalente ao mencionado por Pasternak e
O'Hara, que pelo menos se atenham
a níveis mínimos de bom senso.
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