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CONTARDO CALLIGARIS
É proibido viajar
A modernidade, que começou com a livre circulação, acaba proibindo a viagem
NO EPISÓDIO dos jovens pesquisadores brasileiros barrados em Madri, as autoridades espanholas agiram como se o
cônsul-geral do Brasil contasse lorotas para facilitar o trânsito de imigrantes ilegais. O desrespeito justifica a "retaliação" brasileira.
No mais, a cada dia, as fronteiras
do mundo (não só do primeiro) barram alguém que tenta viajar, sobretudo se for jovem, solteiro e sem as
aparências de uma "vida feita".
Ao atravessar uma fronteira, o
passaporte prova que estamos em
paz com a Justiça de nosso país. As
outras nações devem decidir se somos hóspedes desejáveis. Nas últimas décadas, as "condições" para
ser desejável se multiplicaram. Hoje, no caso da Espanha: 1) 70 por
dia de permanência planejada; 2)
passagem de volta marcada; 3) reserva de hotel, já pago; 4) para
quem se hospedar com parentes,
formulário preenchido pelos mesmos; 5) quem se desloca para trabalhar deve dispor de um contrato
assinado. Normas muito parecidas
valem na maioria dos países.
O escândalo é que essas condições podem nos parecer "aceitáveis". Afinal, qualquer Estado quer
proteger o emprego de seus cidadãos impedindo a chegada de imigrantes não-autorizados, não é?
Pois é, Michel Foucault é mesmo
o pensador para os nossos tempos:
o sistema social e produtivo dominante ordena nossas vidas furtivamente, convencendo-nos de que
não há opressão, mas apenas necessidades "racionais". Se achamos
essas regras "aceitáveis", é porque
já adotamos a idéia de que, no nosso mundo, só é legítimo ter moradia fixa e profissão estável.
As pessoas com moradia fixa podem, quando elas dispõem dos
meios necessários, adquirir uma
passagem de ida e volta e sair de
seu lar seguindo um programa pré-estabelecido -ou seja, podem ser,
ocasionalmente, turistas.
Escárnio: prefere-se que os turistas sejam otários, pagando de antemão. Há uma pousada melhor da
que estava prevista? Você quer encurtar a viagem? Pena, você já pagou. Mas isso é o de menos.
Importa o seguinte. A modernidade, que começou com a circulação (livre ou forçada) de todos os
agentes econômicos, acaba parindo, nem mais nem menos, a proibição da viagem. Como assim?
Pois é, viajar não tem nada a ver
com férias num resort ou com ser
transportado de cidade em cidade
para que os cicerones nos mostrem
as coisas "memoráveis".
Para começar, viajar é usar uma
passagem só de ida.
- Quanto tempo você vai ficar?
- Não faço a menor idéia. Um
dia? Três meses? Um ano?
- E você vai para onde?
- Não sei. Talvez eu curta uma
pequena enseada, alugue um quarto numa casa de pescadores e fique
comendo caranguejos com os pés
na areia. Talvez, já no avião ou pelas ruas de Barcelona, eu me apaixone por uma holandesa, um russo
ou uma argelina e os siga até o país
deles, por uma semana ou um mês.
Se a paixão durar, ficarei por lá.
- E o dinheiro?
- Não sei, meu amigo. Toco violão, posso ganhar um trocado numa esquina ou no metrô. Também
posso lavar pratos, ajudar na colheita, cortar lenha, lavar carros e
vender pulôveres. E, se a coisa
apertar, tenho endereços de parentes e conhecidos que nem sabem
que estou viajando, mas não me recusarão uma sopa e um banho
quente. Além disso, em Paris,
quando fecha o mercado da rua
Saint Antoine, sobram na calçada
as frutas e as saladas que não foram
vendidas; em São Paulo, Londres e
Nova York, conheço dezenas de
igrejas que oferecem um pão com
manteiga; em Varanasi, ao meio
dia, distribuem riso com curry e
carne aos peregrinos.
Cem anos depois da invenção do
passaporte com fotografia, chegamos nisto: uma ordem que só permite se movimentar para consumir férias ou para se relocar segundo os imperativos da produção.
As regras que barram o viajante
expressam nossa própria miséria
coletiva: perdemos de vez o sentimento de que a vida é uma aventura. Preferimos a vida feita à vida
para fazer.
Para quem quiser ler sobre a história da documentação de viagem,
uma sugestão: "Invention of the
Passport: Surveillance, Citizenship
and the State" (invenção do passaporte: vigilância, cidadania e o Estado), de Torpey, Chanuk e Arup
(Cambridge University Press).
Para quem quiser viajar, outra
sugestão: a mentira, num mundo
opressivo, é uma forma aceitável
de resistência.
ccalligari@uol.com.br
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