São Paulo, sábado, 13 de março de 2010

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LIVROS

Crítica/"Khadji-Murát"

Novela de Tolstói celebra vidas que resistem às tiranias

Publicado postumamente, livro aborda o conflito entre russos e tchetchenos

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Editada postumamente em 1912, é usual considerar que a novela "Khadji-Murát" foi composta entre 1896 e 1904. Boris Schnaiderman, o tradutor, supõe que sua confecção se prolongou além disso. O argumento é convincente quando se sabe que "os rascunhos encontrados após a morte de Tolstói somam 2.166 páginas". O seu assunto é a história verídica do líder montanhês que, após anos de luta contra os russos que avançavam sobre o Cáucaso, passa para o lado inimigo, em busca de vingança contra Chamil, chefe tchetcheno que aprisionara sua família.
Longe de tratar o caso como traição, Tolstói celebra Khadji-Murát como signo da vida que resiste às condições funestas das tiranias, seja a do czar ou a do imame muçulmano.
Tolstói desloca assim o conflito entre russos e tchetchenos, feroz ainda hoje, para um estado da questão mais primitivo e menos definido por suas fronteiras políticas. De um lado, está a natureza indômita, o coletivismo anárquico, voluntarista e, de outro, a organização social abstrata e despótica, submetida a um jogo áulico, hábil em forjar razões e manipular uma religião de Estado, não importa se o catolicismo ortodoxo ou o "khazavát", a guerra santa islâmica.
Dito assim, porém, não se tem ideia do que seja a novela em sua vibração enérgica e afetiva. A cada capítulo, o narrador acompanha uma personagem diferente, cujo retrato moral faz saltar aos olhos com a evidência de uma pintura.
Assim se conhecem, por exemplo, os príncipes Vorontzóv, pai e filho, metidos nas intrigas, melindres e frivolidades do alto comando russo; Avdiéiev, que nas campanhas de alistamento compulsivo dos camponeses russos se apresenta voluntariamente no lugar do irmão casado e com filhos; o capitão Butler, aristocrata que se alista na guerra para fugir às vertigens e dívidas do jogo; Nicolai 1º, cuja boçalidade sensual, sob a máscara de estratego, se materializa em despachos cruéis e devaneios mitômanos; Chamil, que compele os caucasianos a entrar na guerra do profeta, cuja voz apenas ele ouve, mas não a ponto de não dar ouvidos aos ciúmes pela popularidade de Khadji-Murát.
Por meio desses desenhos hábeis de cenas e caracteres se apresenta, enfim, a grandeza real do aparente traidor, cuja astúcia, empatia e confiança infantil num destino justo o fazem encarar a desproporção das armas como uma ocasião feliz do combate pela vida.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas

KHADJI-MURÁT
Autor:
Liev Tolstói
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (224 págs.)
Avaliação: ótimo



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