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LIVROS
Crítica/"Khadji-Murát"
Novela de Tolstói celebra vidas que resistem às tiranias
Publicado postumamente, livro aborda o conflito entre russos e tchetchenos
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Editada postumamente
em 1912, é usual considerar que a novela
"Khadji-Murát" foi composta
entre 1896 e 1904. Boris
Schnaiderman, o tradutor, supõe que sua confecção se prolongou além disso. O argumento é convincente quando se sabe que "os rascunhos encontrados após a morte de Tolstói somam 2.166 páginas".
O seu assunto é a história verídica do líder montanhês que,
após anos de luta contra os russos que avançavam sobre o
Cáucaso, passa para o lado inimigo, em busca de vingança
contra Chamil, chefe tchetcheno que aprisionara sua família.
Longe de tratar o caso como
traição, Tolstói celebra Khadji-Murát como signo da vida que
resiste às condições funestas
das tiranias, seja a do czar ou a
do imame muçulmano.
Tolstói desloca assim o conflito entre russos e tchetchenos, feroz ainda hoje, para um
estado da questão mais primitivo e menos definido por suas
fronteiras políticas. De um lado, está a natureza indômita, o
coletivismo anárquico, voluntarista e, de outro, a organização social abstrata e despótica,
submetida a um jogo áulico, hábil em forjar razões e manipular uma religião de Estado, não
importa se o catolicismo ortodoxo ou o "khazavát", a guerra
santa islâmica.
Dito assim, porém, não se
tem ideia do que seja a novela
em sua vibração enérgica e afetiva. A cada capítulo, o narrador
acompanha uma personagem
diferente, cujo retrato moral
faz saltar aos olhos com a evidência de uma pintura.
Assim se conhecem, por
exemplo, os príncipes Vorontzóv, pai e filho, metidos nas intrigas, melindres e frivolidades
do alto comando russo; Avdiéiev, que nas campanhas de
alistamento compulsivo dos
camponeses russos se apresenta voluntariamente no lugar do
irmão casado e com filhos; o capitão Butler, aristocrata que se
alista na guerra para fugir às
vertigens e dívidas do jogo; Nicolai 1º, cuja boçalidade sensual, sob a máscara de estratego, se materializa em despachos cruéis e devaneios mitômanos; Chamil, que compele os
caucasianos a entrar na guerra
do profeta, cuja voz apenas ele
ouve, mas não a ponto de não
dar ouvidos aos ciúmes pela popularidade de Khadji-Murát.
Por meio desses desenhos
hábeis de cenas e caracteres se
apresenta, enfim, a grandeza
real do aparente traidor, cuja
astúcia, empatia e confiança infantil num destino justo o fazem encarar a desproporção
das armas como uma ocasião
feliz do combate pela vida.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Universidade Estadual de Campinas
KHADJI-MURÁT
Autor: Liev Tolstói
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (224 págs.)
Avaliação: ótimo
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