São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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TECNICAMENTE EXEMPLAR
O mundo lírico empobrece

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Bidu Sayão notabilizou-se por personagens reservados a sopranos de voz pequena, mais leve, o que de imediato colocava fora de seu alcance boa parte das heroínas de Verdi -papéis valorizados, pouco mais que hoje, pelo repertório em voga nos anos 30 e 40.
Ao mesmo tempo, por não cantar em alemão, a artista brasileira não chegou a enveredar por Wagner ou Richard Strauss, dois compositores líricos com personagens que se adaptariam perfeitamente a seu timbre e a seu registro.
São esses, grosso modo, as duas principais razões que impedem qualquer analogia entre a grandiosa carreira de Bidu Sayão e a de outras sopranos com notabilidade póstuma talvez bem maior.
A isso se acrescente uma espécie de fatalismo tecnológico. Sua voz começou a envelhecer antes que, no final dos anos 50, se popularizasse a alta fidelidade.
Seu apogeu artístico ainda coincidiu com os registros em 78 rotações, que tornavam proibitiva a gravação de uma ópera completa. O mercado discográfico então editava quase que exclusivamente partes orquestrais, duetos ou árias isoladas do contexto lírico.
Mesmo assim, as gravações da Columbia (hoje pertencente à Sony) mostram uma Bidu Sayão tecnicamente exemplar. Poucas de suas contemporâneas chegariam perto da maneira delicada como ela abordava o papel da camponesa Zerlina, em "Don Giovanni", de Mozart, distante da entonação entre libertinosa e cafajeste que outras vozes imprimiram ao papel.
Também do repertório mozartiano, ela está entre as antológicas intérpretes de Suzana, em "As Bodas de Fígaro", ao mesmo tempo pueril e perspicaz, com as notas mais agudas teatralizando a indignação ou exprimindo de forma cristalina a pureza da alma.
Ela também foi uma das grandes Mimi, em "La Bohème", de Puccini. Perfeitamente adequada na ingenuidade intrínseca que o personagem deve ter. Ela ainda se sobressaiu em "Romeu e Julieta", de Gounod, ou em "La Gioconda", de Ponchielli.
Por fim, Bidu Sayão é a demonstração de uma maneira -digamos- atemporal de cantar. Não há nela os trêmulos exagerados, em seu tempo indevidamente considerados como prova de controle da técnica vocal, mas que hoje seriam assimilados a um exagero de gosto duvidoso. O mundo lírico hoje amanhece mais pobre.


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