São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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LITERATURA
Escritor italiano torna-se fenômeno de vendas com livros policiais protagonizados pelo comissário Montalbano
Sicília de Camilleri é uma terra "noir"

BRUNO GARCEZ
DA REPORTAGEM LOCAL

O mais novo fenômeno literário italiano tem 75 anos, é comunista e cria livros policiais protagonizados por um comissário culto e avesso a armas, envolto em tramas em que a intriga política é farta e a violência, escassa.
Para os afeitos ao canibalismo de Hannibal Lecter, Andrea Camilleri e seu personagem-protagonista (o comissário Salvo Montalbano) podem parecer anacrônicos. Os italianos, porém, pensam de forma diferente, pois em seu país Camilleri já vendeu milhões de cópias.
Na Itália, o novo livro do autor, "La Gita a Tindari" (o quinto estrelado por Montalbano), vendeu mais de 200 mil exemplares em poucos dias, marca alta para o mercado local.
No Brasil, Camilleri é conhecido por "A Forma da Água" e pelo recém-lançado "O Cão de Terracota" (ambos editados pela Record). No próximo mês, a Bertrand Brasil coloca no mercado "Um Fio de Fumaça", que reúne três contos do comissário Montalbano.
O siciliano Camilleri respondeu, por fax, de Roma, onde mora, às perguntas da Folha sobre a personalidade de Montalbano, literatura policial e sua carreira paralela como autor de romances "históricos", termo que ele faz questão de aspear, por não julgá-lo apropriado.

Folha - Por que, em vez das agitadas Roma e Milão, o sr. escolheu a pacífica Vigàta como cenário de seus livros policiais?
Andrea Camilleri -
Vigàta é uma cidade imaginária, de fronteiras variáveis e extensas que compreendem toda a Sicília. Tenho a ilusão de poder adivinhar os pensamentos de seus habitantes. Em 99% dos casos erro. Com o 1% que resta, crio personagens plausíveis. Se ambientasse meus romances em Milão ou Roma, os personagens pareceriam falsos.

Folha - Por que o sr. decidiu, quase aos 70 anos de idade, passar a escrever livros policiais, gênero até hoje tido como "menor"?
Camilleri -
Antes de escrever "A Forma da Água", meu primeiro policial, escrevi outros romances, alguns ditos "históricos". Meu modo de escrever esses livros era (e é) anárquico: faço um capítulo que não sei onde será inserido no romance. Escrevi o policial para ver se era capaz de narrar de "a" a "z", seguindo uma ordem temporal e lógica. Leonardo Sciascia dizia que o romance policial é um ótimo treino para isso. Segui seu conselho. Quanto ao valor literário do policial, houve -além de Simenon- Borges, Pessoa, Durrenmatt, Chesterton e Gadda. Se é um gênero considerado "inferior", paciência.

Folha - Como é possível vender milhões sem incluir nos livros ingredientes de best sellers, como violência e cenas de ação?
Camilleri -
É possível ter sucesso de venda e de crítica mesmo afastando-se das regras. Mas não me distanciei delas intencionalmente. Sou contra narrar cenas excessivamente violentas. Como ao comissário Montalbano, também não me agrada o uso fácil das armas. As melhores armas dele são seu cérebro, sua compreensão dos homens e sua cultura.

Folha - O sr. disse que, em "A Forma da Água", Montalbano ainda não tinha um perfil definido. Que mudanças ele sofreu ao longo dos outros livros?
Camilleri -
Por décadas, dirigi produções de teatro e TV. Preciso, como narrador, ver meus personagens caminharem como se fossem de carne e osso. Não "mudei" Montalbano, mas coloquei-o em foco, dei-lhe uma melhor definição em "O Cão de Terracota". Queria terminar ali com o personagem, mas seu sucesso me obrigou a continuar (sem, porém, abandonar os livros "históricos").

Folha - Montalbano é culto, esquerdista, tem boas maneiras e não se envolve com mulheres ligadas à sua investigação. Pode tal policial existir fora da ficção?
Camilleri -
Creia, comissários cultos, educados e com idéias de esquerda, conheci pelo menos dois. Poderia dizer nome, sobrenome e cidade em que trabalham, mas, no atual momento italiano, não me parece ser um gesto oportuno.

Folha - Por anos, o sr. integrou o Partido Comunista Italiano e já fez críticas ao império de mídia construído por Silvio Berlusconi. A seu ver, o poder que ele exerce é um caso policial?
Camilleri -
Nunca escondi minhas idéias políticas e não tenho intenção de renegá-las. Quanto a Berlusconi, creio que o chefe da oposição italiana não deveria possuir três canais de TV, dois jornais, a maior editora do país e um semanário de grande tiragem. É o homem mais rico da Itália, o que constitui um grande empecilho para a vida política. É algo irregular. Se a Justiça investigar um de seus negócios, soará o grito: "É um complô político!". A direita liberal só crê no mercado. Eu, ao contrário, creio no homem, mesmo que a cor de sua pele seja diferente da minha.

Folha - Quais as semelhanças e diferenças entre seus romances históricos e seus livros policiais?
Camilleri -
Nos romances "históricos" há mais pesquisa de escrita e maior experimentação de estruturas narrativas. Além disso, a linguagem dos "históricos" apresenta ao leitor maiores dificuldades que a dos policiais, que são mais "normais". Gostaria de terminar com um paradoxo: nos "históricos", consigo refletir a realidade italiana de hoje melhor do que nos policiais, que são contemporâneos, mas vivem na herança de minha memória.


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