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LITERATURA
Escritor italiano torna-se fenômeno de vendas com livros policiais protagonizados pelo comissário Montalbano
Sicília de Camilleri é uma terra "noir"
BRUNO GARCEZ
DA REPORTAGEM LOCAL
O mais novo fenômeno literário
italiano tem 75 anos, é comunista
e cria livros policiais protagonizados por um comissário culto e
avesso a armas, envolto em tramas em que a intriga política é
farta e a violência, escassa.
Para os afeitos ao canibalismo
de Hannibal Lecter, Andrea Camilleri e seu personagem-protagonista (o comissário Salvo Montalbano) podem parecer anacrônicos. Os italianos, porém, pensam de forma diferente, pois em
seu país Camilleri já vendeu milhões de cópias.
Na Itália, o novo livro do autor,
"La Gita a Tindari" (o quinto estrelado por Montalbano), vendeu
mais de 200 mil exemplares em
poucos dias, marca alta para o
mercado local.
No Brasil, Camilleri é conhecido
por "A Forma da Água" e pelo recém-lançado "O Cão de Terracota" (ambos editados pela Record).
No próximo mês, a Bertrand Brasil coloca no mercado "Um Fio de
Fumaça", que reúne três contos
do comissário Montalbano.
O siciliano Camilleri respondeu,
por fax, de Roma, onde mora, às
perguntas da Folha sobre a personalidade de Montalbano, literatura policial e sua carreira paralela
como autor de romances "históricos", termo que ele faz questão de
aspear, por não julgá-lo apropriado.
Folha - Por que, em vez das agitadas Roma e Milão, o sr. escolheu a
pacífica Vigàta como cenário de
seus livros policiais?
Andrea Camilleri - Vigàta é uma
cidade imaginária, de fronteiras
variáveis e extensas que compreendem toda a Sicília. Tenho a
ilusão de poder adivinhar os pensamentos de seus habitantes. Em
99% dos casos erro. Com o 1%
que resta, crio personagens plausíveis. Se ambientasse meus romances em Milão ou Roma, os
personagens pareceriam falsos.
Folha - Por que o sr. decidiu, quase aos 70 anos de idade, passar a
escrever livros policiais, gênero até
hoje tido como "menor"?
Camilleri - Antes de escrever "A
Forma da Água", meu primeiro
policial, escrevi outros romances,
alguns ditos "históricos". Meu
modo de escrever esses livros era
(e é) anárquico: faço um capítulo
que não sei onde será inserido no
romance. Escrevi o policial para
ver se era capaz de narrar de "a" a
"z", seguindo uma ordem temporal e lógica. Leonardo Sciascia dizia que o romance policial é um
ótimo treino para isso. Segui seu
conselho. Quanto ao valor literário do policial, houve -além de
Simenon- Borges, Pessoa, Durrenmatt, Chesterton e Gadda. Se é
um gênero considerado "inferior", paciência.
Folha - Como é possível vender
milhões sem incluir nos livros ingredientes de best sellers, como
violência e cenas de ação?
Camilleri - É possível ter sucesso
de venda e de crítica mesmo afastando-se das regras. Mas não me
distanciei delas intencionalmente. Sou contra narrar cenas excessivamente violentas. Como ao comissário Montalbano, também
não me agrada o uso fácil das armas. As melhores armas dele são
seu cérebro, sua compreensão
dos homens e sua cultura.
Folha - O sr. disse que, em "A Forma da Água", Montalbano ainda
não tinha um perfil definido. Que
mudanças ele sofreu ao longo dos
outros livros?
Camilleri - Por décadas, dirigi
produções de teatro e TV. Preciso,
como narrador, ver meus personagens caminharem como se fossem de carne e osso. Não "mudei"
Montalbano, mas coloquei-o em
foco, dei-lhe uma melhor definição em "O Cão de Terracota".
Queria terminar ali com o personagem, mas seu sucesso me obrigou a continuar (sem, porém,
abandonar os livros "históricos").
Folha - Montalbano é culto, esquerdista, tem boas maneiras e
não se envolve com mulheres ligadas à sua investigação. Pode tal policial existir fora da ficção?
Camilleri - Creia, comissários
cultos, educados e com idéias de
esquerda, conheci pelo menos
dois. Poderia dizer nome, sobrenome e cidade em que trabalham,
mas, no atual momento italiano,
não me parece ser um gesto oportuno.
Folha - Por anos, o sr. integrou o
Partido Comunista Italiano e já fez
críticas ao império de mídia construído por Silvio Berlusconi. A seu
ver, o poder que ele exerce é um caso policial?
Camilleri - Nunca escondi minhas idéias políticas e não tenho
intenção de renegá-las. Quanto a
Berlusconi, creio que o chefe da
oposição italiana não deveria possuir três canais de TV, dois jornais, a maior editora do país e um
semanário de grande tiragem. É o
homem mais rico da Itália, o que
constitui um grande empecilho
para a vida política. É algo irregular. Se a Justiça investigar um de
seus negócios, soará o grito: "É
um complô político!". A direita liberal só crê no mercado. Eu, ao
contrário, creio no homem, mesmo que a cor de sua pele seja diferente da minha.
Folha - Quais as semelhanças e diferenças entre seus romances históricos e seus livros policiais?
Camilleri - Nos romances "históricos" há mais pesquisa de escrita
e maior experimentação de estruturas narrativas. Além disso, a linguagem dos "históricos" apresenta ao leitor maiores dificuldades
que a dos policiais, que são mais
"normais". Gostaria de terminar
com um paradoxo: nos "históricos", consigo refletir a realidade
italiana de hoje melhor do que
nos policiais, que são contemporâneos, mas vivem na herança de
minha memória.
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