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São Paulo, terça-feira, 13 de maio de 2003

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BIENAL DO LIVRO

Aos 86, o poeta Manoel de Barros faz de "Memórias Inventadas" o início de sua arqueologia pessoal

Construtor de mitos

ROGÉRIO EDUARDO ALVES
DA REDAÇÃO

Aos 86 anos, o poeta Manoel de Barros volta ao seu início em "Memórias Inventadas - A Infância" numa espécie de auto-arqueologia refinada. Ao tratar de sua infância e primeiras florações poéticas, o pantaneiro inventa-se como mito de si mesmo.
"Acho que mitologizar é uma das funções da poesia. Através das imagens o que aparece é o mito de mim. Sempre que escrevo, escrevo a criação de um mito. Gosto de progredir para o início dos seres. Quando eles inventavam para eles o mundo possível. Os primitivos precisam inventar as suas origens. Os poetas também", datilografou o escritor no papel de fax em entrevista à Folha.
Reinventando-se, Barros reafirma os desenhos de seus primeiros versos, aqueles da década de 30, principalmente do primogênito "Poemas Concebidos sem Pecado" (1937), que deram à luz Cabeludinho, nome com que o jovem Manoel era conhecido quando ainda andava com formigas e brincava com latas mágicas no quintal de sua avó, alimentando-se das desutilidades que serviriam como matéria-prima mais tarde.
"Acho que retomei a flor da infância. Nossa memória depois de 80 anos só funciona para o remoto. Deve ser esse o motivo de minha volta ao Cabeludinho. Só que agora estou com as ferramentas de escrever mais afinadas."
Extrapolando os limites entre a linha em prosa e o verso, essas "Memórias" trazem a arquitetura bem acabada do que estava sugerido nos esboços do estudante de direito no Rio que passava noites arriscando em versos e aprendendo a entortar a sintaxe e as classes gramaticais das palavras.
Esse caráter arqueológico do volume ganha força com a forma pouco usual em que o livro está sendo editado, como um elegante diário a ser xeretado, e com as iluminuras de Martha Barros, filha artista plástica do escritor.
As ilustrações remetem aos desenhos dos povos primitivos encontrados nas paredes das cavernas. "Existe, sim, a obsessão de ver o começo. Acho que a Martha recebeu essa graça também. Ela faz metáforas de pássaros, de bichos, de coisas. As iluminuras da Martha perseguem as pré-coisas."
Época da qual pouco fala, o lançamento dessas memórias da infância parece incentivar o poeta a comentar, nesta entrevista, passagens de sua vida mais adulta. Entre as histórias, revela que, embora vivendo no centro da ebulição intelectual de 30, que normatizava as inovações modernistas de 22, não entrou em contato com os famosos.
"Por ter um temperamento caipira nunca me aproximei dos intelectuais. Lia-os e os admirava. Sobretudo Mário de Andrade, Raul Bopp e Oswald de Andrade. Penso que não sofri influência de nenhum deles."
Essa abertura pode dar esperanças sobre a continuação das memórias pelos anos em que o escritor saiu andarilho pelos Andes e acabou em Nova York, entrando em contato com as artes de Picasso, Braque e Chagal, tão caras a sua poesia, e depois se radicou, com a família, fazendeiro no Pantanal mato-grossense.
"Planejo, sim, continuar no invento de minhas memórias. As da mocidade e as da minha velheira. Não sei se terei tempo para tanto. As letras não fugirão de mim, estou certo. Meu trabalho há de ser o de usar as letras e as sílabas e as palavras como sempre fiz. Sei que as palavras me obedecem. Elas vão pro lado que eu escrever. Estou com esperanças. Mas com 86 anos a máquina de inventar está enferrujando. Não sei, não."
Embora humilde na sua capacidade de continuar poetando, Manoel de Barros tem produzido bastante. Além dos autógrafos que distribuirá nas memórias nesta Bienal do Livro do Rio, lança na ocasião um título infanto-juvenil, também em parceria com sua filha, o "Cantigas por um Passarinho à Toa".
E tudo depois de ganhar as letras européias com a tradução de seu "O Livro das Ignorãças" (93) para o francês. "La Parole sans Limites" está bem traduzida. Gostei. Virei um cuiabano em Paris."


MEMÓRIAS INVENTADAS - A INFÂNCIA. De: Manoel de Barros. Editora: Planeta. R$ 34 (74 págs.).

CANTIGAS POR UM PASSARINHO À TOA. De: Manoel de Barros. Editora: Record. Quanto: preço a definir.



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