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CONTARDO CALLIGARIS
As fotografias dos presos iraquianos
Na capa da Folha de sexta
passada e nos jornais do
mundo inteiro: a soldado americana Lynndie England segurando
a tira que mantém um iraquiano,
nu e rastejante, na coleira.
O governo americano anunciou
que, infelizmente, o conjunto dos
documentos sobre a tortura na
prisão de Abu Ghraib contém coisas "piores", em foto e em vídeo.
A "New Yorker" publicou a fotografia de um iraquiano nu
ameaçado por dois cachorros (capa da Folha de segunda-feira) e
descreveu outra, em que aparece
um preso ensangüentado. Mas,
ao que parece, essas imagens são
exceções.
Pelo que se sabe hoje (terça-feira, quando encerro esta coluna),
as fotografias que veremos não
são imagens de tortura física, mutilação ou assassinato. A galeria
dos horrores é no mesmo tom das
fotos da semana passada. Só para
lembrar: além de Lynndie England com o preso na coleira,
Lynndie e Charles Graner (seu
companheiro de cama) triunfantes sobre um amontoado de iraquianos nus numa suruba forçada, Lynndie rindo enquanto
aponta para o pênis de um preso,
outro preso nu encapuzado com
uma calcinha e por aí vai.
Segunda à noite, aliás, a CNN
informou que, entre as novidades,
se destacam presos forçados a simular sodomia e um ato sexual
entre soldados americanos.
Apesar de tudo isso, a mídia,
quase unânime, fala genericamente de violência e abuso; esquece pudicamente que as imagens são intragáveis por serem
FOTOGRAFIAS ERÓTICAS.
Essas maiúsculas respondem ao
esforço em curso para que desviemos o olhar do óbvio erotismo das
fotografias da semana passada.
Dois exemplos.
À esquerda, Robert Fisk (Folha
de 9 de maio) dá prova de uma
ingenuidade que beira a idiotice,
perguntando, sério: quem treinou
Lynndie e Charles, quem lhes ensinou essas práticas? Ele vê nos
atos fotografados a prova evidente de que torturadores profissionais da CIA presidiram os interrogatórios. Mas de quais interrogatórios ele está falando? Será
que Robert Fisk não vê que, nas
fotos da semana passada, as humilhações impostas aos presos
não têm outra finalidade senão o
gozo de Lynndie, Charles e seus
cúmplices (da CIA ou não)? Será
que Robert Fisk nunca entrou numa "sex shop"? Será, em suma,
que ele não percebe que as fotografias reproduzem a banalidade
do repertório sadomasoquista?
Será que não se dá conta de que a
foto de Lynndie de uniforme e botas, com o preso na coleira, poderia ser, assim como está, o anúncio de uma "dominatrix"?
À direita (também na Folha de
9 de maio), Gerald Baker declara
que a "depravação" de Lynndie e
Charles "é tão difícil de compreender quanto é abominável".
Abominável não há dúvida (por
ser imposta aos presos); mas "difícil de compreender"? Como é possível, quando o sadomasoquismo
integra o jogo sexual da metade
(conto por baixo) dos casais do
mundo? Qual é a surpresa?
Por que Fisk faz de conta que
não percebe o erotismo das imagens? Por que Baker se apressa a
declarar que elas manifestam um
desvio patológico extremo?
Parece que, para ambos, a trivialidade que se trata de negar é a
mesma que foi revelada pelo marquês de Sade: na modernidade, O
EXERCÍCIO DO PODER É ERÓTICO. Incômodo, não é?
O presidente Bush disse que
achou as imagens de Lynndie e
Charles "sickening", nauseabundas. Acredito. Mas, se ele ficou
com vontade de vomitar, é porque as imagens devem ter-lhe
lembrado, justamente, que o poder é uma fonte de gozo, sempre:
goza-se com um preso na coleira,
assim como se goza ordenando
que comece um bombardeio ou
que as tropas avancem.
Não existem motivos nobres
que possam eliminar a parte de
gozo que acompanha o exercício
do poder. Para nós, o poder é sempre erótico, e o erotismo é sempre
atravessado pelo jogo do poder.
Quem não quer saber disso se
condena a um uso louco do poder,
inocentado por suas pretensas
melhores intenções.
Se não reprimirem o erotismo
que explode na cara de quem
contempla as imagens da semana
passada, talvez, desta vez, os
americanos consigam inventar
um uso mais complexo (e, por que
não, mais envergonhado) de seu
poder. Se isso acontecer, agradeçam a Lynndie e Charles.
Para complementar:
1) A imprensa americana não
pára de contrapor duas mulheres
soldados: Lynndie England, a
abominável, e Jessica Lynch, que
foi ferida, presa pelos iraquianos
e liberada por um comando americano. Aposto que as duas receberão (para Jessica já é o caso)
cartas com juras de amor e propostas de casamento. Muitos, como o presidente Bush, acharão
"sickening" (nauseabundos) os
homens que implorarão a
Lynndie para que ela os amarre
na coleira. O problema é que esses
muitos não querem saber o seguinte: aqueles que escreveram
para Jessica, por traz das promessas de carinho e flores (as famosas
melhores intenções), são provavelmente levados pela fantasia de
possuir o corpo da jovem como
eles imaginam que foi possuído e
estuprado pelos iraquianos que a
prenderam (os quais, aliás, na
ocasião, parece que se comportaram decentemente).
2) Domingo à noite, fiz uma
pesquisa na internet. Em menos
de duas horas encontrei o que
procurava. Nas salas de bate-papo abertas pelos assinantes de um
grande provedor americano, seção "Special Interests", numa sala
cujo título convidativo era
"Squeeze my balls" (aperte meus
testículos), lá estava: alguém se
apresentava como uma dominadora e usava, como "nick" (pseudônimo), numa palavra só,
"LynndieEngland".
Não acabei, a coluna continua
na semana que vem, salvo imprevistos.
ccalligari@uol.com.br
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