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RODAPÉ
Nava e a cinza das horas
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
N as décadas de 70 e 80, em
seis alentados volumes, o
mineiro Pedro Nava (1903-1984)
reconstruiu não apenas a matéria
volátil de seus anos de formação e
juventude, mas a perplexidade,
dele e nossa, diante do intervalo,
do abismo cavado entre a vivência
e a lembrança pela ação corrosiva
e recombinante do tempo, que
nos divide, separa e recompõe. O
relançamento de "Cera das Almas" -o sétimo e último livro da
série interrompida por seu suicídio, em maio de 1984- não deixa
de ser uma entrada privilegiada à
monumentalidade ultra-ramificada deste ponto máximo da prosa memorialística brasileira.
Parte do cuidadoso projeto de
sua obra completa -que, além
dos sete volumes de memórias,
inclui textos científicos, cadernos
de esboços, anotações de viagem-, a edição nos transporta
para os bastidores de sua escrita
final, radiografada nos fac-símiles
anexados ao texto. São datiloscritos nervosos, coalhados de correções à mão, cancelamentos e
acréscimos, inversões e supressões, comentários e desenhos,
que confirmam a sensibilidade
para o detalhe e a natureza hiperbólica tendendo ao espraiamento
exuberante do estilo de Nava.
Mas é na forma condensada e
acidental em que sobreviveu o fecho do ciclo que há algo de paradoxalmente convidativo. O título
já faz alusão aos desafios que se
potencializam conforme a transposição literária da matéria autobiográfica dos acontecimentos
expostos se aproxima da contemporaneidade do narrador. Se os
quatro primeiros volumes demoram-se nas origens familiares, na
formação escolar e acadêmica de
Nava, os dois últimos tratam da
vida profissional do jovem médico: da queima ritualística do candelabro do "Galo das Trevas", resta uma única vela, o "Círio Perfeito", e deste a "Cera das Almas",
eco involuntário da "Cinza das
Horas" bandeiriana.
Para além do evidente alcance
de um retrato do país nas décadas
primeiras do século 20 aos olhos
de um conservador esclarecido,
um cético membro das elites, tanto a ênfase no caráter literário de
sua narrativa como as soluções e
os impasses formais a que chegou
deixam-se ler perfeitamente nas
poucas páginas que restaram incompletas. A tensão entre o confessional e a recriação literária levou-o a adotar a solução de novo
desdobramento do narrador, já
cindido no tempo: se os primeiros
volumes são narrados em voz
própria, os últimos colocam no
centro dos acontecimentos um
duplo do narrador (primo, médico ilustre como ele, mesmas raízes, idênticos projetos e percursos), Egon, aqui em cena.
Nava faz do meio clínico e acadêmico microcosmo acabado da
comédia humana, esquadrinhado
pela enorme vocação e cultura
humanística à antiga associada ao
tirocínio analítico, diagnóstico,
virtude e deformação profissional
desenvolvidas ao máximo. Uma
incrível vocação de fisionomista,
capacidade de inscrever os dados
de observação em esboços estilizados de caracteres, dá vida plena
a figuras exemplares, como o arrivista Dr. Sacanagildo Goiaba, cuja
torpeza moral, caricaturada, reluz
no volume por sob o nome esquisito: tipos "agradáveis por fora,
conversados -falsos- entregues, dizendo coisas mais ou menos inteligentes, afetando princípios cristalinos, pródigos de sorrisos e boas palavras, invólucros de
anjo. Entretanto -que sepulcros
caiados...! Brancura limpa e refulgente por fora, mais se destampados- que podridão imunda vai
lá por dentro."
Sua força satírica, penetrante,
devastadora e algo maniqueísta,
com travo cético, guarda o apelo
da melhor ficção realista, preserva
na miniatura um traço dominante das memórias como um todo,
cruzando a experiência individual
com o panorama vasto. Mas estão
lá também as inflexões líricas da
prosa de Nava, deslanchadas pelo
confronto da paisagem da Bahia
de Guanabara que se oferece à janela com a preservada na memória, balanço animado pelo desencanto do homem maduro. A busca da conciliação do impasse na
forma estética, na ficção, tem sua
melhor metáfora nos episódios de
delírio quase febril do narrador,
em que a busca pelo sentido se
converte em princípio doentio,
mas inevitável, dando caráter moderno à sua luta.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente nesta coluna
Cera das Almas
Autor: Pedro Nava
Editora: Ateliê Editorial/Giordano
Quanto: R$ 23 (136 págs.)
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