São Paulo, sábado, 13 de maio de 2006

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RODAPÉ

Nava e a cinza das horas

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

N as décadas de 70 e 80, em seis alentados volumes, o mineiro Pedro Nava (1903-1984) reconstruiu não apenas a matéria volátil de seus anos de formação e juventude, mas a perplexidade, dele e nossa, diante do intervalo, do abismo cavado entre a vivência e a lembrança pela ação corrosiva e recombinante do tempo, que nos divide, separa e recompõe. O relançamento de "Cera das Almas" -o sétimo e último livro da série interrompida por seu suicídio, em maio de 1984- não deixa de ser uma entrada privilegiada à monumentalidade ultra-ramificada deste ponto máximo da prosa memorialística brasileira.
Parte do cuidadoso projeto de sua obra completa -que, além dos sete volumes de memórias, inclui textos científicos, cadernos de esboços, anotações de viagem-, a edição nos transporta para os bastidores de sua escrita final, radiografada nos fac-símiles anexados ao texto. São datiloscritos nervosos, coalhados de correções à mão, cancelamentos e acréscimos, inversões e supressões, comentários e desenhos, que confirmam a sensibilidade para o detalhe e a natureza hiperbólica tendendo ao espraiamento exuberante do estilo de Nava.
Mas é na forma condensada e acidental em que sobreviveu o fecho do ciclo que há algo de paradoxalmente convidativo. O título já faz alusão aos desafios que se potencializam conforme a transposição literária da matéria autobiográfica dos acontecimentos expostos se aproxima da contemporaneidade do narrador. Se os quatro primeiros volumes demoram-se nas origens familiares, na formação escolar e acadêmica de Nava, os dois últimos tratam da vida profissional do jovem médico: da queima ritualística do candelabro do "Galo das Trevas", resta uma única vela, o "Círio Perfeito", e deste a "Cera das Almas", eco involuntário da "Cinza das Horas" bandeiriana.
Para além do evidente alcance de um retrato do país nas décadas primeiras do século 20 aos olhos de um conservador esclarecido, um cético membro das elites, tanto a ênfase no caráter literário de sua narrativa como as soluções e os impasses formais a que chegou deixam-se ler perfeitamente nas poucas páginas que restaram incompletas. A tensão entre o confessional e a recriação literária levou-o a adotar a solução de novo desdobramento do narrador, já cindido no tempo: se os primeiros volumes são narrados em voz própria, os últimos colocam no centro dos acontecimentos um duplo do narrador (primo, médico ilustre como ele, mesmas raízes, idênticos projetos e percursos), Egon, aqui em cena.
Nava faz do meio clínico e acadêmico microcosmo acabado da comédia humana, esquadrinhado pela enorme vocação e cultura humanística à antiga associada ao tirocínio analítico, diagnóstico, virtude e deformação profissional desenvolvidas ao máximo. Uma incrível vocação de fisionomista, capacidade de inscrever os dados de observação em esboços estilizados de caracteres, dá vida plena a figuras exemplares, como o arrivista Dr. Sacanagildo Goiaba, cuja torpeza moral, caricaturada, reluz no volume por sob o nome esquisito: tipos "agradáveis por fora, conversados -falsos- entregues, dizendo coisas mais ou menos inteligentes, afetando princípios cristalinos, pródigos de sorrisos e boas palavras, invólucros de anjo. Entretanto -que sepulcros caiados...! Brancura limpa e refulgente por fora, mais se destampados- que podridão imunda vai lá por dentro."
Sua força satírica, penetrante, devastadora e algo maniqueísta, com travo cético, guarda o apelo da melhor ficção realista, preserva na miniatura um traço dominante das memórias como um todo, cruzando a experiência individual com o panorama vasto. Mas estão lá também as inflexões líricas da prosa de Nava, deslanchadas pelo confronto da paisagem da Bahia de Guanabara que se oferece à janela com a preservada na memória, balanço animado pelo desencanto do homem maduro. A busca da conciliação do impasse na forma estética, na ficção, tem sua melhor metáfora nos episódios de delírio quase febril do narrador, em que a busca pelo sentido se converte em princípio doentio, mas inevitável, dando caráter moderno à sua luta.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente nesta coluna
Cera das Almas
     Autor: Pedro Nava Editora: Ateliê Editorial/Giordano Quanto: R$ 23 (136 págs.)


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