São Paulo, quarta-feira, 13 de maio de 2009

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MARCELO COELHO

Mares e dores, patos e poetas


Perdemos tempo com muitos livros atuais; sofremos de medo exagerado dos clássicos


PENSANDO BEM , faz muito mais sentido imaginar que o mundo tenha sido criado por uma mulher.
Na tradição judaica e cristã, estamos acostumados a pensar num Deus de barba branca, separando o céu das águas, moldando Adão a partir do barro e tirando Eva de uma costela sobressalente do macho original.
Não nego a poesia bíblica: coube a Eva uma tarefa sublime, a de dar nome a tudo o que encontrava, flores e bichos, árvores e estrelas, em seus passeios pelo paraíso.
Na Finlândia, todavia, a história é contada de modo diferente. Quem criou o mundo foi uma mulher, depois de 700 anos de trabalho de parto. O nome dela (uma virgem, aliás) é Ílmatar.
Leio essas notícias num livro que acaba de ser publicado pela Ateliê Editorial, o "Kalevala", poema primeiro, com tradução direta do finlandês por José Bizerril e Álvaro Faleiros.
A edição é bilíngue, de modo que as queixas da jovem parturiente, ao longo dos seus séculos de dor, podem ser lidas assim: "Voi poloinen, päiviäni,/lapsi kurja, kulkuani!". O que significa: "Oh, infelizes, meus dias,/pobrezinha, a minha vida!".
Não é preciso entender finlandês para perceber a quantidade de vogais, tão raras em outras línguas do Norte, que existe aqui, e seu poder de transmitir não sei que espécie de infantilidade e carinho nesses versos, que a tradução sugere num lindo diminutivo: "Pobrezinha, a minha vida!".
Temos pavor de ler os clássicos de qualquer literatura. Perdemos tempo com muitos livros atuais, deixando autores como Goethe, Dante, Virgílio e Montaigne para quando estivermos bem velhinhos.
Minha experiência diz o contrário. Ainda que possam existir algumas estranhezas de linguagem, o que mais espanta nos grandes clássicos é a sua juventude, sua acessibilidade, sua capacidade de entretenimento, de frescor e de luz.
Nunca pensei que fosse ler o "Kalevala", espécie de "Odisseia" nacional finlandesa, reconstruída pelo erudito Elias Lönrott (1802-1884), a partir da tradição oral de seu país.
Quem gosta de música clássica sabe que o épico inspirou algumas composições de Sibelius (1865-1957), mas mesmo o maior fanático do sinfonista finlandês não teria muita razão para se aprofundar na literatura do seu país de origem.
Verdade que, há muitos anos, vi Rogério de Cerqueira Leite, ele próprio uma espécie de finlandês enorme de olhos azuis, com a tradução espanhola do "Kalevala" nas mãos, antes de uma reunião do Conselho Editorial da Folha.
"Não é uma chatice?", perguntei, refletindo o medo generalizado dos clássicos a que aludi. "Não, é muito engraçado", respondeu Rogério.
O livro tem, de fato, a graça da mais radical infância. Basta ver o que acontece com aquela virgem infeliz e grávida, que se queixava a um vago deus Ukko, nos versos citados anteriormente.
Perdida entre o céu e o mar, a jovem recebe a visita de um pato, "ave direta", diz a tradução. O pato encontra ninho no lugar mais aconchegante da anatomia de nossa protagonista. "Supôs ali turfa fresca,/uma moita de capim".
De lá sairão ovos de ouro e um ovo de ferro. Um ovo se quebra: faz-se a abóbada celeste da metade de uma casca, e da outra a crosta da terra. A gema será o sol, a clara, a lua. Do final de tudo, nascerá o primeiro homem, Väinämonen, cuja função no mundo será a de ser poeta.
O primeiro livro do "Kalevala" termina assim. Os próximos capítulos deverão, espero, ser traduzidos brevemente.
Termino com um trecho que dá ideia da naturalidade, do tom vivo e infantil que, neste como em outros clássicos da literatura, são a maior razão de sua sobrevivência:
"Meu irmão, caro irmãozinho,/ amigo de meninice!/Comigo vem canta agora,/ vem de novo alça a voz (...)/ Raras vezes reunimo-nos,/ temos entretanto um ao outro/por estas pobres fronteiras,/ nas tristes terras do Norte (...)/ Cantemos toadas boas (...)/ minha mãe as ensinava,/ fiando na sua roca,/ eu no chão quando criança,/ enrolado em seus joelhos,/ lá com barbinha de leite,/com boquinha de coalhada".
Não são tão pobres as fronteiras do poeta. Longe das terras do Norte, os brasileiros podem, a partir de agora, cantar com ele seus versos de turfas e de ninhos, de dores, mares, patos e poetas.

coelhofsp@uol.com.br

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