São Paulo, sexta, 13 de junho de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OUTRAS HISTÓRIAS
Bundinhas crocantes regadas por boa cachaça

NINA HORTA
especial para a Folha

Os dias frios e de céu azul tão próprios de junho têm um cheiro de lenha queimada, de fósforos de cor, de estrelas e rojões.
São cheiros que não vêm de lugar nenhum, estão no ar, misturados com guaco adocicado e invadem fundo o peito dos que andam pelas calçadas, mãos nos bolsos.
Neste clima de curau e canjica, li um livro -"A Culinária Tradicional do Vale do Paraíba"- que descobri em anúncio despretensioso.
Era preciso depositar R$ 25 a favor da Fundação Nacional do Tropeirismo. Não meço sacrifícios quando alguém resolve reacender a velha chama, um pequeno balão de tradições ou iluminar um pedaço de história já meio esquecido.
Fui ao Banco (um transtorno) e dias depois já era cidadã do Vale.
Quem sabe o que é um fogão de tucururuva, uma trempe, um fogão de chão, de taipa, de rabo ou de poial? Quando é que se come bagre ensopado e pirão de farinha de mandioca? Traíra e lambari fritos? Moqueca de peixe, paçoca de amendoim e pinhão cozido?
O livro -uma apostila de 372 páginas- tem descrições de utensílios, um grande receituário do Vale, as ervas e legumes de nossas hortas, dietas de parturientes e ainda histórias de gente que faz o café da manhã deixando uma xicrinha já adoçada para São Benedito com as palavras: "São Benedito, já foi cozinheiro, agora é santinho, do Deus verdadeiro".
Enrolada nos cobertores, sonhando com uma leitoa pururuca ou uma vaca atolada, foi me dando uma brasilidade feroz e uma fome dos diabos.
Desci, peguei uma frigideira de ferro bem preta, pus dentro dela um pouco de feijão pronto de caldo grosso e, enquanto a coisa esquentava, caprichei na escolha de um cálice de cristal vermelho que enchi de boa pinga.
Esmaguei no feijão duas pimentinhas do quintal, espalhei por cima uma leve aragem de boa farinha de mandioca branca e comi ali mesmo, de colher, na frigideira, entre lambadas de cachaça.
Este ataque "gourmet" e "gourmand" foi inspirado nas comidas de Taubaté, uma espécie de exorcismo a todos vitelos velhos, perdizes e faisões engelhados, salmões gordos e mansos dos bufês.
Para culminar, como única homenagem das gentes que escrevem livros e os editam sobre nossos costumes perdidos, tive desejo de bunda frita de iça.
Bunda, palavra que estala na boca como torresmo, frita, que evoca crosta torrada. Bunda de iça frita, o caviar da gente taubateana.
Por favor, Fundação Nacional do Tropeirismo, gostei do livro, quero conhecer a sede de telha vã em Caçapava. Mas imagino que deva existir época do ano em que as iças, felinianas, revoem nos crepúsculos de Caçapava.
Não quero e não posso morrer sem ter provado estas bundinhas crocantes regadas por boa cachaça. Senhores tropeiros, não me façam essa desfeita. Aceito convites.

Livro: "A Culinária Tradicional do Vale do Paraíba" Editora: JAC Autor: Paulo C. Florençano e Maria Morgado de Abreu Quanto: R$ 25 (depositar cheque à Fundação Nacional do Tropeirismo no Banco do Brasil ou enviá-lo à fundação na caixa postal 50 12 280 000, Caçapava, São Paulo). Informações nos tels. (012) 552-4647, (012) 253-1773


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.