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OUTRAS HISTÓRIAS
Bundinhas crocantes regadas por boa cachaça
NINA HORTA
especial para a Folha
Os dias frios e de céu azul tão
próprios de junho têm um cheiro
de lenha queimada, de fósforos de
cor, de estrelas e rojões.
São cheiros que não vêm de lugar
nenhum, estão no ar, misturados
com guaco adocicado e invadem
fundo o peito dos que andam pelas
calçadas, mãos nos bolsos.
Neste clima de curau e canjica, li
um livro -"A Culinária Tradicional do Vale do Paraíba"- que
descobri em anúncio despretensioso.
Era preciso depositar R$ 25 a favor da Fundação Nacional do Tropeirismo. Não meço sacrifícios
quando alguém resolve reacender
a velha chama, um pequeno balão
de tradições ou iluminar um pedaço de história já meio esquecido.
Fui ao Banco (um transtorno) e
dias depois já era cidadã do Vale.
Quem sabe o que é um fogão de
tucururuva, uma trempe, um fogão de chão, de taipa, de rabo ou
de poial? Quando é que se come
bagre ensopado e pirão de farinha
de mandioca? Traíra e lambari fritos? Moqueca de peixe, paçoca de
amendoim e pinhão cozido?
O livro -uma apostila de 372
páginas- tem descrições de utensílios, um grande receituário do
Vale, as ervas e legumes de nossas
hortas, dietas de parturientes e
ainda histórias de gente que faz o
café da manhã deixando uma xicrinha já adoçada para São Benedito com as palavras: "São Benedito, já foi cozinheiro, agora é santinho, do Deus verdadeiro".
Enrolada nos cobertores, sonhando com uma leitoa pururuca
ou uma vaca atolada, foi me dando
uma brasilidade feroz e uma fome
dos diabos.
Desci, peguei uma frigideira de
ferro bem preta, pus dentro dela
um pouco de feijão pronto de caldo grosso e, enquanto a coisa esquentava, caprichei na escolha de
um cálice de cristal vermelho que
enchi de boa pinga.
Esmaguei no feijão duas pimentinhas do quintal, espalhei por cima uma leve aragem de boa farinha de mandioca branca e comi ali
mesmo, de colher, na frigideira,
entre lambadas de cachaça.
Este ataque "gourmet" e
"gourmand" foi inspirado nas
comidas de Taubaté, uma espécie
de exorcismo a todos vitelos velhos, perdizes e faisões engelhados, salmões gordos e mansos dos
bufês.
Para culminar, como única homenagem das gentes que escrevem
livros e os editam sobre nossos
costumes perdidos, tive desejo de
bunda frita de iça.
Bunda, palavra que estala na boca como torresmo, frita, que evoca
crosta torrada. Bunda de iça frita,
o caviar da gente taubateana.
Por favor, Fundação Nacional do
Tropeirismo, gostei do livro, quero conhecer a sede de telha vã em
Caçapava. Mas imagino que deva
existir época do ano em que as
iças, felinianas, revoem nos crepúsculos de Caçapava.
Não quero e não posso morrer
sem ter provado estas bundinhas
crocantes regadas por boa cachaça. Senhores tropeiros, não me façam essa desfeita. Aceito convites.
Livro: "A Culinária Tradicional do Vale do
Paraíba"
Editora: JAC
Autor: Paulo C. Florençano e Maria
Morgado de Abreu
Quanto: R$ 25 (depositar cheque à
Fundação Nacional do Tropeirismo no
Banco do Brasil ou enviá-lo à fundação na
caixa postal 50 12 280 000, Caçapava, São
Paulo). Informações nos tels. (012)
552-4647, (012) 253-1773
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