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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Transportar com cuidado
Esvazio a casa em plena mudança. E encontro fotografias e cartas que ficaram de amores passados
O CORAÇÃO é elástico quando
somos adolescentes e estúpidos. Esvazio a casa em plena
mudança. E encontro, perdidas em
gavetas, fotografias e cartas e vestígios de areia que ficaram de verões
passados. Amores de um mês, conhecimentos de praia que foram como vieram, mesmo quando nesse
tempo tudo parecia eterno e as promessas tinham o peso das declarações definitivas. Eu nunca vou te esquecer, diziam os dois. Despediam-se, choravam, havia uma orquestra
imaginária que descia dos céus. As
ondas imolavam-se contra as rochas, como num filme de Hitchcock.
Nas semanas seguintes, as cartas
trocavam-se com uma urgência só
concedida aos amantes nas óperas
clássicas. Combinavam-se prazos.
Memorizavam-se estações ferroviárias, como nos filmes franceses tão
cheios de tristeza e neblina. "Eu estarei lá." Mas a vida intrometia-se
entretanto, o outono chegava para
arrefecer os corpos e havia cartas
mais esparsas -uma por semana,
uma por mês- até só restar silêncio
e memória e mais nada.
Ficaram fotografias. Que será feito dessa garota de Birmingham, que
conheci no sul de Portugal, e com
que me via de fraque e cartola a subir
ao altar? Tinha o mais belo nome
que uma criatura pode ter (Dawn,
"madrugada") e as cartas, dela, alternando na cor (rosa, azul, verde) e
polvilhadas por estrelas brilhantes
que se colavam ao papel como maquiagem nas faces de uma corista,
prometiam tudo e exigiam tudo. O
mesmo para uma belga, que conheci
em circunstâncias semelhantes e
que em circunstâncias semelhantes
fui esquecendo, ou por quem fui esquecido. Imagino-as casadas, hoje, e
na limpeza sazonal da casa, talvez na
fase do divórcio, uma delas encontrará a fotografia perdida de um adolescente português. Alguém perguntará quem é o personagem do retrato. Elas dirão que não sabem, ou não
se lembram. E sorrirão por dentro,
como normalmente sorrimos com
um segredo, ou uma piada privada.
O coração é elástico quando somos adolescentes e estúpidos. Morremos várias vezes, ressuscitamos
várias vezes. Usamos e abusamos
desse músculo que bate apressadamente no peito como um tambor
festivo porque acreditamos que a
festa é móvel, como na Paris de Hemingway, um carrossel que não pára
nunca, e que cada tristeza será redimida por uma nova alegria triste.
Mas envelhecemos. O coração bate mais devagar. As ondas não rebentam contra as rochas ao som da
orquestra: são agora espuma lenta e
cansada, como nós, e apenas se exaltam com a regularidade cósmica de
um ciclo lunar. Arrumo tudo numa
caixa e pergunto se vale a pena. Sim,
se vale a pena levar o passado comigo e arrumá-lo num sótão, que será
um dia revolvido por filhos ou netos.
Não vale a pena.
Mas então o homem das mudanças entra em casa e avisa que o carro
está à espera. E pergunta se a última
caixa é para levar. O coração só é
elástico quando somos adolescentes
e estúpidos. Sorrindo por dentro,
como sorrimos com um segredo, ou
uma piada privada, digo que sim,
que é para levar. Mas aviso: transporte com cuidado, por favor. Nada
é mais frágil do que o passado.
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