São Paulo, sábado, 13 de julho de 2002

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Livro desvela músico que enganou a todos

SHIN OLIVA SUZUKI
DA REDAÇÃO

Narrativas que juntam transexualidade e rock como ingredientes não são acontecimentos raros. Colocar jazz como peça substituta, vá lá, mas não chega a ser uma solução original para valer a empreitada. Mas, se a história aconteceu realmente, é o caso de merecer ser contada.
Foi a proposta da poeta escocesa Jackie Kay em sua primeira incursão pelo terreno do romance. "O Trompete" conta os dias posteriores à morte do músico Joss Moody e o turbilhão originado pela descoberta singular de que, na verdade, sua certidão de nascimento possuía o conservador nome de Josephine Moore.
A história é toda inspirada na vida do pianista e saxofonista norte-americano Billy Tipton, nascido Dorothy Lucille no Estado de Oklahoma. Durante a década de 50, seu trio excursionou com relativo sucesso pelos Estados Unidos, chegando a gravar três discos, hoje fora de catálogo.
Ao morrer, em 1989, a vida de Tipton foi prato cheio para os tablóides do mundo inteiro. A mexeriqueira revista "People" estampou em um título: "Morte revela o estranho segredo de Billy Tipton: ele era ela".
Jackie Kay, porém, preferiu centrar sua atenção no desenvolvimento psicológico dos personagens à volta de Moody/Tipton e salpicou-o de elementos poéticos. Deu voz à companheira do jazzista, confidente exclusiva; ao magoado filho adotivo, com quem já tinha uma relação conflituosa; e a pessoas com visões teoricamente "técnicas", como a médica legista e o agente funerário.
Segundo a escritora, em entrevista à Folha por telefone, os personagens desempenham o mesmo papel dos músicos em uma banda de jazz: "Eu me baseei no gênero como estrutura para a narrativa. Os "instrumentos" contam uma história, há momentos em que dialogam e outros em que há espaço para improvisos".
O gosto pelo estilo veio já desde criança, com um ambiente familiar cercado por discos de Louis Armstrong, Bessie Smith, Duke Ellington, Count Basie, Ella Fitzgerald, entre outros. "Era como se eles fizessem parte da minha família, porque o papel deles na música tinha reflexo na minha vida e na de outros negros que cresceram na Escócia."
Filha de pai nigeriano e mãe escocesa, Jackie Kay, 40, nasceu em Edimburgo e foi adotada por um casal de comunistas de Glasgow, que participava de passeatas antiapartheid.
Antes de se dedicar à literatura, chegou a fazer serviços de limpeza e trabalhou em um hospital. Hoje ela vive em Manchester com a também poeta Carol Ann Duffy e mais dois filhos.

Múltiplas visões
A idéia de Jackie Kay em dar voz em primeira pessoa a muitos personagens está relacionada à construção de uma identidade na visão alheia.
"Cada membro de uma família tem um ponto de vista a respeito de fatos passados, até da festa de Natal que presenciou. Identidade é algo fluido, não estático. No caso do livro, isso fez a narrativa mudar, e algumas passagens são mesmo contraditórias", afirma a autora.
Com Kay se decidindo pela ficção, os detalhes jornalísticos foram deixados para o livro "Suits me - The Double Life of Billy Tipton", escrito pela professora da Universidade de Stanford Diane Wood Middlebrook e lançado no Reino Unido depois de "O Trompete", no ano de 1998. Sem aparentar pontas de rivalidade, ela diz ainda não ter lido a biografia.
E se Moody/Tipton tivesse nascido próximo aos dias de hoje? "Acho que, musicalmente, ele teria ido além do que conquistou, porque atualmente há mais oportunidades para as mulheres na música. Hoje elas podem ser médicas ou tocar jazz", diz Kay.


O TROMPETE - autora: Jackie Kay. Tradutora: Myriam Campello. Editora: Record. Quanto: R$ 38 (304 págs.).



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