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Crítica/"Medos Privados em Lugares Públicos"
Surpreendente, Resnais volta a iluminar o cinema
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Nos anos 60, Alain Resnais iluminou o cinema e desesperou seus
freqüentadores com os labirintos magníficos que criou em filmes como "O Ano Passado em
Marienbad" ou "Muriel". Depois, parece ter caído de moda.
A descontinuidade já não era
novidade, e Resnais parecia ter
perdido a radicalidade.
O próprio cinema moderno,
no mais, perdia radicalidade à
medida que avançava nos anos
70. Sem a mesma força, abria
caminho para a ameaçadora
cultura do "blockbuster", que
floresceria nos anos 80, levando o cinema americano a uma
supremacia como nunca se vira
na história do cinema. E a Europa foi banida de nossas telas.
Desde "Meu Tio da América"
(1980), os filmes de Resnais (ou
qualquer outro bom nome),
quando chegavam, se dirigiam
para festivais ou para exibições
em uma sala solitária, reduzidos ao exotismo. Foi assim com
"Smoking/ No Smoking"
(1993), exibido na Sala Cinemateca, que desenvolvia em 300
minutos duas séries de histórias possíveis, com dois atores
(Sabine Azéma e Pierre Arditi).
A longa introdução é necessária para reatar os fios da produção do diretor no momento
em que ele retorna com toda
força neste "Medos Privados
em Lugares Públicos". A base é
a mesma de "Smoking/No
Smoking", uma peça do inglês
Alan Ayckbourn.
À primeira vista, no entanto,
ela parece desprovida do caráter vanguardista do filme de
1993. Lá estão um corretor de
imóveis (André Dussolier), a
moça que trabalha ao seu lado
(Azéma) e a irmã dele (Isabelle
Carré); uma cliente do corretor
(Laura Morante), seu noivo desempregado (Lambert Wilson)
e o garçom (Pierre Arditi) do
hotel onde o noivo bebe.
Os primeiros minutos dizem
respeito a uma história de desenvolvimento psicológico
clássico, com os personagens se
mostrando pouco a pouco ao
espectador. Algo, porém, soa
estranho: o colorido dos cenários, que lembram "Muriel";
certa disposição dos espaços,
que descolam não tão sutilmente da vida real.
Aos poucos, esses personagens deixam de ocupar o lugar
estático que tinham na narrativa e buscam novas acomodações. O corretor assiste a uma
fita pornográfica e tenta assediar a colega de trabalho; sua irmã busca um encontro às escuras e encontra o noivo desempregado; e assim por diante.
O essencial é que essa circulação nos leva de volta ao labirinto, aquele dos anos 60. Hoje
ele é mais suave, quase como se
fosse disfarçado. Mas está lá: a
cada momento nos damos conta de que cada personagem tece, na verdade, seu próprio labirinto. Ele o esconde sob uma
identidade, sob a aparência de
uma unidade. Mas Resnais parece que vai dispondo espelhos
dentro de cada um, enquanto a
história se desenvolve, multiplicando-os, tornando-os ao
mesmo tempo quebradiços e
estilhaçados mas também surpreendentes em sua diversidade e ricos em seus paradoxos.
"Medos Privados..." faz
transparecer com clareza a
enorme unidade dessa obra
sempre diversa e surpreendente que Resnais vem construindo nos últimos 50 anos e que
faz dele um dos grandes cineastas de nosso tempo.
MEDOS PRIVADOS EM
LUGARES PÚBLICOS
Produção: França, Itália, 2006
Com: Sabine Azéma, André Dussolier
Quando: em cartaz nos cines Reserva
Cultural, HSBC Belas Artes e circuito
Avaliação: ótimo
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