São Paulo, Terça-feira, 13 de Julho de 1999
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Baden Powell, anti-estrela

Marlene Bergamo/Folha Imagem
O violonista carioca Baden Powell, 61, que prepara um disco só com sobras do compositor João Pernambuco, durante entrevista num quarto de hotel em São Paulo



Fora de catálogo no país, violonista-símbolo da bossa nova grava na surdina e faz poucos shows no Brasil


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Enquanto João Gilberto ganha páginas de revistas de fofoca ao gravar um novo disco cercado de mistério, sob produção conturbada de Caetano Veloso, outra das pedras de força da bossa nova, o também violonista -e compositor- Baden Powell frequenta os estúdios de gravação. Em silêncio.
Quase totalmente esquecido no mercado fonográfico nacional, o carioca Baden Powell, 61, grava, por encomenda do Sesc e sem previsão de lançamento, um álbum todo dedicado à obra do violonista pernambucano João Pernambuco (1883-1947), co-compositor nem sempre creditado do clássico "Luar do Sertão".
De gravações muito esporádicas no Brasil nesta década, Baden mantém-se objeto de adoração em países como França e Japão, onde, bem diferentemente do Brasil, toda a sua obra anterior permanece em catálogo e sempre há um selo disposto a registrar qualquer novo trabalho seu.
Vivendo entre o Rio de Janeiro e o mundo, é mais um (auto) exilado da miséria cultural brasileira. Músico por excelência e sem perfil de astro pop, Baden mostra-se também, como não poderia deixar de ser, avesso à mídia. Ainda assim, falou à Folha e expôs um pouco de sua personalidade esquiva, de anti-estrela.

Folha - Como era viver no mundo sem bossa nova, antes de ela ter aparecido?
Baden Powell -
Era ótimo. A bossa nova foi um movimento bom, né? Para mim foi uma continuação da vida. Sou músico (silêncio). Estou tentando alcançar o que você está querendo falar.

Folha - Por exemplo, quem o influenciou musicalmente, o ensinou a gostar de música?
Baden -
Ninguém. Ninguém. Ninguém. Ninguém ensina isso. Você aprende é um instrumento, mas a gostar e fazer, ninguém. Isso é um dom, você nasce com ele. Ninguém aprende a gostar, a amar. É coisa do seu coração.

Folha - Não é todo mundo que aprende, pratica e ajuda a inventar um padrão novo de música, que antes não existia.
Baden -
Não, essas invenções... É uma coisa natural. O que foi muito bom é que foi um movimento de jovens e foi na mesma época do movimento dos Beatles. Tinha uns anos de diferença, mas era uma mesma geração. Elvis Presley, a juventude transviada, foi tudo uma mesma geração.

Folha - Você acompanhava esses movimentos pop?
Baden -
Não, mas os jornais davam. Eu não gostava, não. Não era minha linha. Essa música não tem conteúdo nenhum, meu filho. Isso é uma música de caubói, se você quer saber. É música caipira com letra em inglês. Os Beatles foram um pouquinho melhores. O que trouxe foi que essa geração não tinha uma música própria, dela. Tinha bolero, tango, música mexicana, que era música de adulto. Os jovens de 8 até 16 anos, os jovens do topetezinho, não tinham a música deles.

Folha - A bossa nova não era música de adulto?
Baden -
Não. Era de jovem.

Folha - O jovem gostava de Beatles e bossa nova?
Baden -
Ué, o que é que tem? Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Não. Absolutamente nada, nada, nada. Não faça confusão de música ruim com música boa. A música de Carnaval também é porcaria, mas tem sua hora e sua razão. O jovem dessa época não ia a boate. Era coisa de velho que carregava sua amante e só dançava tango. Quando os moderninhos apareceram, a música começou a mudar também.
Virou uma coisa mais lírica, mais de namorado, romântica. E onde tem jovem tem revolução. Sem juventude não tem revolução. Se rock é música ruim, isso é outro departamento. Esse negócio de rock é para criança.

Folha - A revolução da sua geração destituiu Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Orlando Silva. O que você achava deles?
Baden -
Mas você acha que eu seria um exemplo? Fico assim de responder, porque sou músico. Nasci com o dom da música. A minha opinião pessoal não vai valer, não vai explicar nada. Meu pai fazia serenata tocando aquelas coisas do tempo do João Charuto. Para mim música é lindo, tanto velha como nova. Era bonito.
Com 10 anos, eu já viajava com tudo quanto era artista, acompanhando música cubana, italiana, o que fosse. Já sabia acompanhar tudo. Com 12 anos, conhecia o Brasil todo. E estudava violão clássico. Meus vizinhos eram Pixinguinha, Jacob do Bandolim. Ia na igreja, o padre contratava Cyro Monteiro e Dalva de Oliveira, quem ia acompanhar era eu.
Ao mesmo tempo, eu ligava rádio e escutava Glenn Miller, Tommy Dorsey. Eu gostava, tinha intuição musical. Por isso eu não sirvo de exemplo. Eu não dançava, não suportava baile, nem cantava, nem gostava de troço de música caipira, desde criança.
Iam me buscar na minha casa. Era menino-prodígio, mas não me considero nada disso. Não sei se meu exemplo serve. Não sou eu que escolho a rua em que vou passar, não. A gente vai pela vida e aprende a caminhar.
Bossa nova para mim é coisa de rotina. Apareceram uns jovens aí, fizeram uma revolução. Vai ter outra agora, sem querer, dos jovens. É natural. Essa música brasileira que está aí, de fundo de quintal, não está agradando aos jovens. Pode agradar uma parte, mas é muito de mau gosto. De mau gosto. Não tem mensagem nenhuma. É ruim. E tudo que é ruim é maioria. Sempre foi assim. A maioria do Brasil é subdesenvolvida, você não pode fazer nada, tem que esperar.

Folha - Nesse sentido, então, a bossa nova nunca dominou?
Baden -
Não. Dominou os jovens que são abertos. Aqueles que não são não têm bala na agulha para competir. Se deixa na mão deles, eles não fazem nada. A chance foi dada, está aí, o fundo de quintal. Não fizeram nada. Estão fazendo música de porcaria. Eles não têm capacidade, não têm intelecto, estão muito aquém. A bossa nova nasceu lá na zona sul do Rio, intelectualmente...

Folha - Entre pessoas que não eram pobres...
Baden -
Não sei se a pobreza tem algo a ver. Não deve misturar. É coisa de intelecto. Eram mais abertos. Esses daqui não têm nem violão nem compõem nada. Vai ser uma coisinha, mas não tem conteúdo nenhum. É feito sorvete, se botou no sol derrete e não sobra nada. Se por acaso você desligar, eles somem e daqui a duas semanas você não lembra nem o nome. Não deixa saudade nenhuma, porque não tem valor. É o que chamo de falso valor. Porque tem uma garotada que tem valor.

Folha - Quem?
Baden -
Vários. Os fãs que vão me visitar, garotos que compõem e tocam, sabem ler música, tocam instrumento, estudam, têm método de música. Só não têm é chance em TVs, em gravadoras. O pagode tem uma grande chance. Já pensou se fossem inteligentes, o que não iam fazer?

Folha - O momento político do país interfere nisso, não?
Baden -
Não, são mais as televisões. Eles cortam a cultura propositalmente. As multinacionais, essa cultura de pagode.

Folha - O governo?
Baden -
Não, o governo não tem nada a ver.

Folha - Ele não tem responsabilidade pela educação?
Baden -
É, mas não sei se isso é um negócio proposital. O que toca na rádio, que vende, de gravadora, de editora, não está na mão deles. Por exemplo: não existe um disco meu na praça. Tenho mais de 25 discos na PolyGram (hoje Universal). Não existe um na praça, quero até mover um processo.
Fui lá, perguntei por que lançam lá fora e não aqui. Não souberam responder. É proposital. Eles querem manter esses países feito o Brasil lá embaixo. Me considero numa ponte que vai ligar a música popular à erudita. Esses eles cortam.

Folha - Você teve problemas políticos no regime militar?
Baden -
Eu, não! Nunca tive problema político nenhum. Nunca me meti. Só por trás. Nunca fui de direita, sempre fui um cara de esquerda. (Pega o violão, a pedido da fotógrafa.)

Folha - Um violão é diferente dos outros ou são todos iguais?
Baden -
Claro que é diferente, rapaz (dá risada)! Mas é mais ou menos igual. A medida do braço, o som, o timbre são mais ou menos iguais. Não pode ser muito diferente. Um é mais doce e tal... Esse que estou usando agora é de um músico da Argentina que virou carpinteiro de instrumentos. Cortou a árvore e tudo, disse que fez pensando em mim esse violão.
Peguei o violão, toquei e não achei lá essas coisas, não. Agradeci o violão. Mas um dia, quando cheguei em casa, comecei a estudar nele um pouquinho e fiquei enamorado do instrumento. Aí começou a responder ao som que eu gostaria. Aí ficou, até hoje. Violão tem essas histórias.

Folha - Você se considera um músico erudito ou popular?
Baden -
Isso é um negócio interessante. Eu acho que minha música vai mais para o erudito-popular. Erudito quer dizer sábio. Não é aquele erudito que não é popular, o erudito impopular, mas sim a composição difícil, com temas difíceis, o erudito-popular. Não chega a ser aquele clássico que você não entende nada.
Mas todo clássico pode vir a ser popular, e todo popular pode vir a ser clássico. Há certos choros que são difíceis, parecem música erudita. Os choros de Villa-Lobos... Eu mesmo tenho algumas composições de choro erudito. Não é algo de que o povo participe.

Folha - Se considera sambista?
Baden -
Sambista eu sou, porque tenho uma noção de ritmo muito grande. Está no meu sangue. Quando eu era criança, no bairro em que fui criado, São Cristóvão, batia um tamborim arretado, nos blocos de rua. Tenho ritmo na mão para tamborim, surdo, desde pequeno. Acho que transferi isso para a minha batida de samba no violão. Eu realmente não danço, olha que engraçado.
Mas tenho um ritmo por dentro fora do comum. Então sou sambista. Inclusive quando componho samba, é samba-samba. Samba com cara de samba, "quaquaraquaquá, quem riu/ quaquaraquaquá, fui eu", sambão. Isso eu tenho.


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