São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 2008

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MARCELO COELHO

A mosca que mudará o mundo


O segredo é "vender" como entretenimento uma ação desejável socialmente

A TÉ PARA fazer xixi corretamente o ser humano precisa de um empurrãozinho. Li isso numa entrevista publicada anteontem na Folha, com o economista Richard Thaler.
Consideram-no um dos gurus de Barack Obama, e sua teoria do "empurrãozinho", ou "nudge", em inglês, é explicada num livro do mesmo nome, ainda a ser lançado no Brasil.
O exemplo do xixi vem de um aeroporto holandês, que se debatia com o descuido dos usuários do sexo masculino. Tiveram a idéia de estampar a imagem de uma mosca dentro dos urinóis, bem perto do escoadouro.
Desse modo, a urina acaba caindo perto do ralo. Reduziram-se em 80% os casos de sujeira, digamos, no entorno imediato.
A teoria do "empurrãozinho" tem muitas aplicações. Thaler a resume na tese do "paternalismo libertário". Parte de um pressuposto correto.
A saber, o de que os seres humanos não são tão racionais quanto afirma a teoria econômica clássica. Muitas vezes, sabem que suas ações são contrárias a seus interesses, e mesmo assim... conseguem fazer besteira.
Outro exemplo citado por Thaler diz respeito aos planos de previdência de alguns países. Quem se munisse de calculadora e tempo concluiria que são vantajosos. Mas pouca gente faz isso, e não tem paciência para preencher os formulários exigidos. A idéia de Thaler é tornar automática a inscrição do trabalhador: só preencherá formulários, assim, se não quiser aderir.
Das moscas no urinol ao plano de previdência, há uma vasta diferença conceitual. Mas sua base é idêntica: a "mão invisível do mercado" não basta para fazer com que tudo funcione.
E tampouco a "mão pesada da lei" se mostra eficaz. Poderíamos imaginar multas e prisões para quem suja o banheiro; não teriam, com certeza, o mesmo resultado.
O método é ao mesmo tempo fascinante e assustador. Talvez aponte para uma forma de dominação política bastante diversa daquelas que conhecíamos até agora.
Força, repressão: foi este o principal meio de conseguir com que os seres humanos façam o que lhes mandam fazer. O Estado sempre teve como fundamento a ameaça e o exercício da violência.
Ao lado disso, não se negligenciou o papel das crenças, da religião, da propaganda. O indivíduo teme pelo próprio corpo e pela própria alma. E esse temor se dissolve quando imerso no oceano da coletividade, no corpo anônimo da massa, na alma unânime do grupo.
O liberalismo econômico talvez tenha pretendido, no limite, criar um outro sistema para conduzir o rebanho humano. Em vez de cânticos e chicotes, apostou num mecanismo indireto de recompensas e punições, teoricamente restritos à sua forma monetária: lucros, prejuízos, bonificações, multas.
O Estado, e a ideologia, tiveram mais de uma vez seu declínio previsto alegremente, com base nessa perspectiva liberal. A nova teoria do "empurrãozinho" parece admitir o desacerto desse ponto de vista e investe em mecanismos novos de manipulação da sociedade.
Talvez correspondam à mudança tecnológica em curso. Já se disse que o poder de Hitler tinha relação direta com o uso do rádio. O ouvinte isolado, anônimo, e (pior ainda) desempregado, deixava-se mobilizar por aquele meio "cego" de comunicação, entregando-se em seguida à visão espetacular da ordem uniformizada, do rosto do líder, dos desfiles, das olimpíadas e dos pogroms.
A TV trouxe passividade e conformismo. Estava tudo ali dentro de casa; ninguém precisava sair da sala para sentir-se parte do "Grande Todo". Saía, é certo, para trabalhar e consumir. A publicidade foi o "empurrão" por excelência do Ocidente, na segunda metade do século 20.
Nosso mundo, entretanto, é mais interativo e vai diminuindo cada vez mais as diferenças entre trabalho, lazer e consumo. Não que as pessoas deixem de trabalhar: mas um joguinho de computador não deixa de ser parecido com a jornada de um digitador de textos, de um controlador de trânsito, ou de um piloto de bombardeiro.
O segredo da mosquinha holandesa é "vender" como entretenimento uma ação desejável socialmente. O próprio marketing, com a internet, usa cotidianamente de truques para misturar compra e diversão num mesmo clique.
Resumo rápido da história: no futuro ninguém fará xixi fora do penico. Quem estiver do lado das moscas que se cuide.

coelhofsp@uol.com.br


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