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MARCELO COELHO
O círculo infernal de "South Park"
O garoto deve ter uns 7
anos e está apaixonado por
uma coleguinha da escola. Pergunta a um adulto o que se deve
fazer para agradar uma menina.
O adulto responde: "Ache o clitóris".
Na sala de aula, o professor pede aos alunos que resolvam um
problema de matemática.
"Quanto é cinco vezes dois?" Um
menino levanta a mão e diz: "Doze". O professor cumprimenta o
aluno. "Muito bem, fulano. Mas,
continuando, será que podemos
ouvir a resposta de alguém que
não seja retardado mental?"
É esse o tipo de humor presente
em "South Park", desenho animado que já há algum tempo
aparece na televisão e que agora
virou longa-metragem. Está em
cartaz em São Paulo, proibido para menores de 14 anos. Só que,
quando fui ver, havia crianças
bem pequenas no cinema.
Uma pobre mãe, atrás de mim,
tentava explicar as legendas para
o filho, que ainda não sabia ler. A
quantidade de palavrões no filme
é tamanha, contudo, que ela ficava a maior parte do tempo em silêncio. Não só os palavrões, mas
também imagens "pesadas" devem ter constrangido bastante a
moça.
Há, por exemplo, uma cena no
inferno. Belzebu nutre uma paixão por Saddam Hussein. Os dois
aparecem deitados na cama de
casal. A foto de um pênis ereto
surge nas mãos de Saddam, que
se diz excitado com as confidências do companheiro.
Decididamente, "South Park"
não é para moralistas nem para
crianças. De minha parte -embora o tom com que comecei o artigo pareça um pouco escandalizado-, diverti-me bastante. O
ritmo narrativo, o deboche e a
violência crítica desse desenho o
tornam irresistível; em especial, se
tivermos raiva suficiente da babaquice média norte-americana,
que desde as primeiras cenas sofre
todo tipo de ataque.
Um mundo de bons costumes e
intenções salvadoras, de educação "saudável" e entretenimento
"inocente" é virado do avesso em
"South Park". Transforma-se em
militarismo triunfante, em insensibilidade moral e nessa espécie
de fascismo cafona, de estreiteza
eufórica e opressiva, que é típica
da indústria cultural americana.
A história começa quando quatro garotos da bela cidadezinha
americana vão ao cinema ver um
desenho animado de seus personagens prediletos, uma dupla de
canadenses que falam palavrão o
tempo todo. Os meninos saem do
cinema com um enorme repertório de obscenidades. Pais, educadores e líderes se mobilizam para
estancar a fonte da corrupção
moral. Prendem a dupla do desenho e Clinton termina declarando guerra ao Canadá.
O desenho segue, ironicamente,
o esquema clássico de Hollywood,
com números musicais interrompendo a narrativa. Há desde uma
balada de Satã, o mal-amado, até
a cantoria frenética das mães
contra o Canadá. Para incentivar
o alistamento militar, o governo
promove um megashow de graça
antes da batalha.
A necessidade permanente de
um inimigo externo, a vontade
paranóica de encontrar um responsável alienígena pela perda
da "pureza" originária da pátria,
a capacidade de intensa mobilização civil em torno de questões
idiotas, a transformação da sanguinolência em "show business"
-o desenho critica ferozmente
tudo isso.
Com toda sua força crítica, entretanto, "South Park" me deixou
a impressão de ter algo de insatisfatório, de irresoluto.
Volto à situação que descrevi no
começo do artigo. Atrás de mim, a
mãe não sabia como contar ao filho pequeno as enormidades que
apareciam na tela. Ora, esse constrangimento era exatamente o
que o filme estava tematizando.
No filme, crianças são expostas a
um desenho ultrajante. Na vida
real, acontecia o mesmo. Os heróis de "South Park" lutam contra a censura e a hipocrisia moralista. Nada contra -mas tudo se
passa como se lutassem em causa
própria: pois o desenho de que fazem parte vem sendo combatido e
censurado também.
O ímpeto de "South Park" e
suas melhores piadas talvez se devam mais à infantilidade com
que se dedicam a chocar o espectador, com cenas de escatologia e
palavrões, e menos ao diagnóstico
-adulto e corrosivo- que fazem
da mentalidade americana.
Simetricamente, aquilo que
"South Park" critica -a redução
de questões políticas e militares a
"entertainment" e indústria- é
feito pelo próprio desenho, que
funciona (e muito bem) imitando, ponto por ponto, a estrutura
dos musicais de Hollywood. Disse
acima que esse era um procedimento irônico. Mas não sei se a
ironia existe, aqui, como arma de
subversão ou como mecanismo
até carinhoso de auto-referência;
se o conteúdo crítico usa a forma
do musical -como se fosse uma
bomba que se quisesse camuflar- ou se é a forma do musical
que usa o conteúdo crítico, engolindo-o sem problemas.
Ou melhor, engole-o, e dá uns
arrotos depois. Cedo ao mau gosto da metáfora porque "South
Park" insiste, como se sabe, em
coisas do tipo.
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