São Paulo, quinta-feira, 13 de setembro de 2001

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Juliana Galdino e Cleide Queiroz falam do mito de Eurípedes e de Chico Buarque e Paulo Pontes

Medéias sob medida

Atrizes trilham caminhos distintos para interpretar o papel em montagens dirigidas por Antunes Filho e Gabriel Villela

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
A atriz Juliana Galdino em cena de "Medéia", versão de Antunes Filho para a obra de Eurípedes


VALMIR SANTOS
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Quando o mundo compartilha reais dimensões do terror em movimentos que concorrem com a tragédia grega, vale conferir a representação humana em jogo.
As atrizes Juliana Galdino, 27, e Cleide Queiroz, 50, têm consciência disso e buscam traduzir em cena, por caminhos distintos, a relação contemporânea com o mito de Medéia.
Juliana protagoniza a "Medéia" do dramaturgo grego Eurípedes (495-107 a.C.), segundo o encenador Antunes Filho, do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), em concorrida temporada no paulistano Sesc Belenzinho.
Cleide interpreta Joana, a Medéia brasileira, na "Gota d'Água" de Chico Buarque e Paulo Pontes (1940-76), segundo Gabriel Villela, que estréia amanhã no Tom Brasil, também em São Paulo.
Em 1975, Buarque e Pontes transpuseram a tragédia de Medéia para um conjunto habitacional popular.
Medéia, a mulher que vinga a traição de Jasão de forma avassaladora -na história, ela assassina os próprios filhos e trama as mortes do rei Creonte e da rainha-, surge como Joana, enquanto o invasor pelo qual se apaixona e lhe devota a vida permanece com o mesmo nome.
Na concepção de Cleide, a personagem encarna "a dor e as discriminações sofridas pelas mulheres de todo o mundo". A própria atriz, na condição de negra, solteira após dois casamentos, um aborto e nenhum filho, identifica-se com o perfil.
Adepta da pesquisa exaustiva na construção de um personagem (ela estudou com Ziembinski, Eugênio Kusnet, Augusto Boal, Alberto D'Aversa), Cleide foi buscar "inspiração" nas mulheres vítimas de violência.
Diz emparelhar sua Joana com depoimentos de mães dos cantões do país que preferem ver os filhos mortos a passarem fome ou secam o choro com a raiva acumulada dos homens que lhes abandonam.
"Agarrei o papel com unhas e dentes, quero fazê-lo com toda a paixão que tenho pelo teatro e dedicá-lo às mulheres que sofrem discriminação", afirma Cleide.
Juliana segue outra linha. Trabalha, por exemplo, com os arquétipos de Jung, as imagens psíquicas do inconsciente coletivo.
"Para lidar com os arquétipos é preciso ser pleno, não se pode ser meia-boca, senão não é mito, não é Medéia, não é Jasão. Essa vida meia-boca cabe a nós, que tropeçamos aqui e ali", diz ela.
"Se eu fizesse uma Medéia entre o naturalismo e o realismo, cairia numa dona de casa, seria vulgar."
Para traduzir a filiação da sua Medéia à mãe natureza, Juliana recorre a uma ilustração: "A Medéia é uma árvore se retorcendo enquanto está pegando fogo em sua volta".
"Retorcer" é propriamente a expressão corporal recorrente da atriz em cena, numa interpretação que define como expressionista, faz uso de movimentos "quebrados" (como o teatro japonês kabuki) e se estende à voz, segundo ela o elemento-chave do espetáculo.
"Dentro de contextos-limites, as palavras adquirem outras camadas, cada uma traz sua musicalidade", diz Juliana Galdino. Há quase um mês e meio da estréia, se vê "amaciando o texto" ao dirigir o carro nos cerca de 60 km entre Jundiaí, onde mora, e a capital.
A atriz entrou para o CPT há dois anos e meio. Antes, participou de grupos amadores com perspectivas experimentais. Autocrítica, já intuía que tudo funcionava maravilhas no plano das idéias, mas naufragava na execução, ou seja, no apuro técnico.
Juliana participou dos "Prêt-à-Porter" 3 e 4, este atualmente em cartaz (aos sábados, ela faz "Medéia", às 19h, e "Prêt-à-Porter", às 22h). Atuou no coro em "Fragmentos Troianos" (99) e conquistou o papel protagonista da nova montagem a dois meses da estréia.
Em "Gota d'Água", Cleide submete-se ao que define como um desafio ao ceder sua voz "doce" à voz "gutural" de Joana, personagem que surge com braços contidos, sempre com as mãos para trás, rija.
A atriz começou no teatro em 1969, contracenando com Paulo Autran (também produtor) em "Morte e Vida Severina", poema de João Cabral de Melo Neto musicado por Chico Buarque e dirigido por Silnei Siqueira.
No currículo, telenovelas, espetáculos infantis. Autodidata, conheceu Gabriel Villela no final dos anos 80. Ele a dirigiu em radionovelas e no musical "O Mambembe" (96), de Arthur Azevedo.
Joana, Cleide, Medéia ou Juliana, tanto faz, atrizes e personagens expõem ponto comum: a cena mais difícil é a do infanticídio.



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