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Candomblé criou espaço de negociação
Para historiador, "cultura popular de negociação" predomina nos dias de hoje
Reis acha que não se deve exagerar a importância
da África no Brasil, pois
a bagagem cultural dos escravos teve de ser refeita
Mariângela de Mattos Nogueira/Divulgação
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O historiador João José Reis, 56, da Universidade Federal da Bahia, em sua casa, em Salvador
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia trechos da entrevista
que o historiador concedeu à
Folha.(SYLVIA COLOMBO)
FOLHA - Seu livro nos mostra a trajetória de Domingos desde a África
até tornar-se um feiticeiro influente,
um "figurão". Como entender aspectos de sua personalidade que parecem contraditórios?
JOÃO JOSÉ REIS - Domingos era
influente entre os africanos da
cidade, sobretudo devido à sua
ocupação como adivinho e curandeiro. Influenciava brancos
e mestiços que o procuravam
para tratar de seus problemas.
Era chamado de "papai Domingos". Um "figurão" investia em
escravos se pudesse. Isso não
quer dizer que virasse um zelador da classe senhorial, nem
que fosse um libertador da classe servil por ser africano.
Ajudar escravos a "amansar
senhor" era um serviço pelo
qual era pago. Para brancos, fazia trabalhos como amarrar casais, fazer prosperar no comércio, curar doenças e talvez
amansar escravos. Não há contradição, mas uma lógica parecida com a do advogado que defende seu cliente. Figuras como
Domingos sugerem que modelos preconcebidos sobre a escravidão podem ser revistos.
É certo, porém, que Domingos e outros libertos foram exceção. A maioria dos africanos
importados morria escravizada, e grande parte dos que se libertavam vivia na pobreza.
FOLHA - Você mostra como a sociedade baiana da época passou por
um rearranjo por conta do aumento
da população de negros libertos.
Que aspectos da Bahia de hoje são
fruto dessas mudanças?
REIS - Na primeira metade do
século 19, o número de escravos
subiu a seu maior patamar histórico no Brasil, que se tornou
nesse período o maior consumidor mundial de africanos. E,
desde o final do século 18, a população negra e mestiça livre e
liberta era a que mais crescia.
Esses setores se tornaram
uma preocupação política e policial da elite. Estiveram em todas as grandes mobilizações, na
época da independência, nos
movimentos que a sucederam,
nas revoltas regenciais. Tornaram-se uma "classe perigosa"
para a sociedade estabelecida.
O candomblé fez parte de um
movimento de surdina, de institucionalização social e política, uma religião que participara
de revoltas escravas, mas que se
especializou em negociar um
espaço de respiração no mundo
dos brancos.
Essa sabedoria política atravessou a República e se projeta
hoje, não é típica da Bahia, mas
aqui é muito forte. Entre nós
ainda predomina essa cultura
popular de negociação, mesmo
entre grupos negros organizados. A elite branca é que negocia pouco.
FOLHA - O estudo sobre a escravidão era muito deficiente. Isso mudou? Dá-se mais atenção à África?
REIS - Pesquisadores como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre
prestaram atenção à conexão
entre Brasil e África no passado. Depois, veio Pierre Verger,
que mobilizou grande documentação para investigar relações entre Bahia e Benim.
Hoje um grande número de
pesquisadores busca entender
a África melhor. Neste caso,
procurei saber o que se passava
no reino de Lagos (Nigéria),
terra de Domingos.
Mas não se deve exagerar a
presença da África, porque a vida dos africanos feitos escravos
teve que ser refeita. Boa parte
da bagagem cultural foi abandonada ou reformada, até como
imperativo de sobrevivência.
O historiador deve tentar estudar por que certos elementos
culturais ficaram e que novos
significados ganharam, em geral na mistura com outros, de
origens africanas ou locais.
DOMINGOS SODRÉ - UM
SACERDOTE AFRICANO
Autor: João José Reis
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (461 págs.)
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