São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2008

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Candomblé criou espaço de negociação

Para historiador, "cultura popular de negociação" predomina nos dias de hoje

Reis acha que não se deve exagerar a importância da África no Brasil, pois a bagagem cultural dos escravos teve de ser refeita


Mariângela de Mattos Nogueira/Divulgação
O historiador João José Reis, 56, da Universidade Federal da Bahia, em sua casa, em Salvador

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia trechos da entrevista que o historiador concedeu à Folha.(SYLVIA COLOMBO)

 

FOLHA - Seu livro nos mostra a trajetória de Domingos desde a África até tornar-se um feiticeiro influente, um "figurão". Como entender aspectos de sua personalidade que parecem contraditórios?
JOÃO JOSÉ REIS
- Domingos era influente entre os africanos da cidade, sobretudo devido à sua ocupação como adivinho e curandeiro. Influenciava brancos e mestiços que o procuravam para tratar de seus problemas. Era chamado de "papai Domingos". Um "figurão" investia em escravos se pudesse. Isso não quer dizer que virasse um zelador da classe senhorial, nem que fosse um libertador da classe servil por ser africano. Ajudar escravos a "amansar senhor" era um serviço pelo qual era pago. Para brancos, fazia trabalhos como amarrar casais, fazer prosperar no comércio, curar doenças e talvez amansar escravos. Não há contradição, mas uma lógica parecida com a do advogado que defende seu cliente. Figuras como Domingos sugerem que modelos preconcebidos sobre a escravidão podem ser revistos. É certo, porém, que Domingos e outros libertos foram exceção. A maioria dos africanos importados morria escravizada, e grande parte dos que se libertavam vivia na pobreza.

FOLHA - Você mostra como a sociedade baiana da época passou por um rearranjo por conta do aumento da população de negros libertos. Que aspectos da Bahia de hoje são fruto dessas mudanças?
REIS
- Na primeira metade do século 19, o número de escravos subiu a seu maior patamar histórico no Brasil, que se tornou nesse período o maior consumidor mundial de africanos. E, desde o final do século 18, a população negra e mestiça livre e liberta era a que mais crescia. Esses setores se tornaram uma preocupação política e policial da elite. Estiveram em todas as grandes mobilizações, na época da independência, nos movimentos que a sucederam, nas revoltas regenciais. Tornaram-se uma "classe perigosa" para a sociedade estabelecida. O candomblé fez parte de um movimento de surdina, de institucionalização social e política, uma religião que participara de revoltas escravas, mas que se especializou em negociar um espaço de respiração no mundo dos brancos. Essa sabedoria política atravessou a República e se projeta hoje, não é típica da Bahia, mas aqui é muito forte. Entre nós ainda predomina essa cultura popular de negociação, mesmo entre grupos negros organizados. A elite branca é que negocia pouco.

FOLHA - O estudo sobre a escravidão era muito deficiente. Isso mudou? Dá-se mais atenção à África?
REIS
- Pesquisadores como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre prestaram atenção à conexão entre Brasil e África no passado. Depois, veio Pierre Verger, que mobilizou grande documentação para investigar relações entre Bahia e Benim. Hoje um grande número de pesquisadores busca entender a África melhor. Neste caso, procurei saber o que se passava no reino de Lagos (Nigéria), terra de Domingos. Mas não se deve exagerar a presença da África, porque a vida dos africanos feitos escravos teve que ser refeita. Boa parte da bagagem cultural foi abandonada ou reformada, até como imperativo de sobrevivência. O historiador deve tentar estudar por que certos elementos culturais ficaram e que novos significados ganharam, em geral na mistura com outros, de origens africanas ou locais.

DOMINGOS SODRÉ - UM SACERDOTE AFRICANO
Autor: João José Reis
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (461 págs.)



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