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ANÁLISE
O perseguidor
SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Fernando Sabino tem o perfil mais singular da literatura
brasileira no século 20. É uma celebridade, no sentido hollywoodiano e global da palavra. Aparentemente, assemelha-se a Erico
Verissimo e a Jorge Amado. Deles, no entanto, se distancia por
ter construído sua obra em cima
de sólida, irremovível e única paixão pela literatura.
Idealizou-a sem o compromisso
partidário e revolucionário, arma
feroz e recompensadora nas mãos
de Amado. Escreveu-a sem cair
nas graças do entretenimento de
alta qualidade, porta para o sucesso de Verissimo. Aparentemente,
Paulo Coelho quer assemelhar-se
a ele. Como poderia, se Fernando,
além de apaixonado pelas letras, é
um estilista impecável, um escritor que na mais tenra idade "quis
ser gramático", como confessou
várias vezes?
Fernando Sabino foi um perseguidor, o perseguidor do Santo
Graal da literatura. Por ser um
perseguidor, viveu de maneira
atormentada a relação entre a literatura e o catolicismo, alinhando-se a uma estirpe defunta de escritores com formação cristã, como
Octávio de Faria, Lúcio Cardoso e
Augusto Frederico Schmidt. O estranho e pouco salutar parentesco, associado à paixão pela literatura, são os resquícios que guarda
do modo francês de ser escritor
no Brasil. A esse modo de ser devem ser também associadas sua
amizade por Mario de Andrade,
atento mentor desde a publicação
do primeiro livro de contos, "Os
Grilos Não Cantam Mais" (1941),
e também suas relações de afeto
com Clarice Lispector, companheira em idade e assombro.
O amor pelo cinema, pelos romances policiais (julgava Raymond Chandler "um dos maiores
escritores do nosso tempo") e
uma longa estada em Manhattan
logo após o fim da Segunda Guerra, fizeram com que desse por encerrado o ciclo do modo francês
de ser escritor para inaugurar, entre nós, o modo norte-americano.
Ostentava todas as qualidades,
defeitos e cacoetes dos romancistas da chamada geração perdida,
em particular os de Scott Fitzgerald. Seu primeiro grande romance, "O Encontro Marcado" (1956),
guarda semelhanças com "Este
Lado do Paraíso" (1920).
Não é difícil decodificar hoje o
receituário que Fernando Sabino
e aqueles escritores puseram em
prática para se tornarem celebridades. A antipatia pelos aparatos
ideológicos de pensamento (leia-se o marxismo) no processo de
construção dos personagens e da
obra de arte. A crença de que se
pode escrever a história duma sociedade com o instrumental frágil
e estético da ficção. A classe média
urbana como objeto exclusivo da
escrita artística. O fastio pelos
modismos formais de composição do romance, tão ao gosto das
vanguardas históricas (em contraste, leiam-se os romances de
Oswald de Andrade ou de Guimarães Rosa). A dedicação obsessiva
a um estilo enxuto, gramaticalmente correto e bem-humorado,
quase sem ironias, como arma de
sedução do leitor moderno. O
apoio popular que emprestam ao
elitismo da literatura pela repercussão que conseguem na mídia
graças a atividades paralelas, tidas
como "hobby" (Fernando foi
campeão de natação na juventude
e, na idade madura, exibia-se na
bateria em grupos de jazz; foi ainda dono de editora e cineasta).
A singularidade maior da celebridade que é Fernando Sabino,
sua redenção como escritor, está
na autenticidade e no despojamento. Nem tudo que cai na rede
é peixe. Está na coragem em ter
associado o destino de pelo menos dois dos seus grandes livros à
recomendação de Horácio, o retórico latino. Por décadas "O
Grande Mentecapto" (1979) ficou
trancado na gaveta sob o longuíssimo título de "Crônica das Aventuras e Desventuras do Grande
Mentecapto Geraldo Viramundo...". Seu último grande lançamento, "Os Movimentos Simulados" (2004), teve uma primeira
versão dos anos 1940. Confessou
em entrevista que tinha jogado fora várias novelas. Dava o motivo:
"Alguém dizia "isso não presta",
pronto, o negócio ia para o lixo".
O escritor Fernando Sabino seria tão pop quanto o papa, não
fosse ele tão modesto ao falar da
própria atividade literária. Confidencia: "O artista é sempre meio
desajeitado, um deficitário, um
descompensado, que só chega ao
seu próprio tamanho na hora em
que realiza a sua obra". Fernando
era um legítimo perseguidor, na
tradição do personagem de Julio
Cortázar. Nasceu homem, morreu menino. Escrevia todos os
dias, com gênio ou sem gênio, como costumava dizer Stendhal. Ele
o dizia de maneira mais pitoresca,
citando o jogador Didi: "Treino é
treino, jogo é jogo". Nada mais revelador do déficit entre a condição humana e a superestima do
Graal literário, nada mais comprobatório da razão que transforma toda a vida numa busca infinita, que os vários manuscritos que
deixou por anos na gaveta à espera da salvação pela inexcedível
paixão literária.
Silviano Santiago é escritor, poeta e
crítico, autor de, entre outros, "O Falso
Mentiroso" e "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco)
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