São Paulo, quinta-feira, 13 de outubro de 2005

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NOS BASTIDORES DA MÍDIA

Revista semanal americana ganha versão digital integral de seus 80 anos de existência

"New Yorker" marca encontro de 4.000 dias

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Primeiro, a má notícia. Este repórter não leu inteiras todas as quase 4.000 edições da revista "New Yorker", a melhor e (ainda hoje) mais bem escrita publicação semanal norte-americana, que comemorou seus 80 anos de existência no dia 21 de fevereiro último. Segundo, a boa: se o leitor quiser, pode passar os próximos 11 anos e meio fazendo isso, se devorar uma edição por dia.
É que acaba de ser lançado "The Complete New Yorker" (a "New Yorker" completa, Random House), um livrão vermelho com 125 páginas de texto, uma introdução bem-humorada do atual editor, David Remnick, e oito DVDs-ROM com TODA a revista digitalizada, da primeira edição, que chegou às bancas dos EUA no dia 21 de fevereiro de 1925, com o que se tornaria seu símbolo da revista na capa, o dândi Eustace Tiller (na época ainda não-batizado), até a comemorativa dos 80 anos.
Inédita no Brasil, pode ser comprada em sites de vendas que entregam no país, como Amazon e Barnes & Noble por US$ 100 (R$ 223 mais envio). Além do conteúdo, traz mecanismos de busca completos. Digite, por exemplo, "Dorothy Parker", e aparecem na janelinha os 115 textos que a escritora fez para a revista; ou Art Spiegelman (68 ilustrações); ou "Truman Capote" (13 reportagens). É de enlouquecer.
"Os leitores reclamavam", escreve Remnick, o quinto editor, que sucedeu o furacão Tina Brown em 1993, pouco antes de a revista ser vendida para a gigante Condé Nast e pouco depois de a jornalista britânica ser acusada de quase acabar com a eterna fleuma da revista, ao publicar pela primeira vez fotografias, por exemplo, e redesenhar o conteúdo inteiro, deixando-o mais "pop".
Até agora, para ter acesso a edições passadas, diz Remnick, era preciso que fossem a bibliotecas atrás de microfilmes, com "resultados chaplinianos", ou fizessem como estudantes e confiassem no Google, que consideram "uma moderna Biblioteca de Alexandria turbinada". Ele tem razão: o site da "New Yorker" (www.newyorker.com) é um dos mais blasés do ramo jornalístico.
Mas de certa maneira define a alma da revista que formou gerações de leitores, revelou gerações de jornalistas, escritores e intelectuais e apresentou uns aos outros num casamento feliz: se todo o mundo está fazendo igual, a "New Yorker" faz diferente -geralmente, de maneira surpreendente. Não é isso o que buscamos, afinal? Era o que acreditava Harold Ross, fundador e primeiro editor, ao chegar a Nova York vindo da Costa Oeste.
Ele sabia que queria criar uma revista semanal, mas tinha mais idéia do que não queria que ela fosse do que o contrário. Numa "carta de intenções" que escreveu meses antes de lançá-la, dirigida a potenciais anunciantes e assinantes, dizia que queria "inteligência e clareza", "o humano em vez do corporativo" e leitores com "interesse cosmopolita". "Não vai ser nem radical nem intelectual. Será o que chamamos de sofisticada e presumirá que seus leitores tenham um certo grau de inteligência. Vai odiar bobagens."
E assim foi, ou pelo menos seria por um tempo. As primeiras edições tiveram picos de 500 mil exemplares, mas logo estacionaram em 25 mil, no que foi chamado de "o grande fracasso de 1925". Até que Ross (1892-1951), conhecido mais por sua capacidade de trabalho do que por ser um intelectual (é dele a pergunta "Moby Dick é o homem ou a baleia?"), mas esperto como uma raposa, fez o que fazia melhor: cercar-se de gente brilhante.
Contratou Katharine White, que o convenceu a investir em ficção séria e reportagens de peso; E.B. White, que daria forma ao texto da revista (e depois lançaria a "Bíblia" do gênero, "The Elements of Style", o avô de todos os manuais de jornalismo); e o mítico Joseph Mitchell, o precursor do jornalismo literário, que escreveu reportagens e perfis irretocáveis de 1938 a 1964, quando colocou ponto final em seu último texto -mas ainda teria uma sala e trabalharia na revista até sua morte, em 1996, ninguém sabe muito bem fazendo o quê.
Deu certo pelas próximas oito décadas, com um período de crise nos anos 90. Hoje, a revista gira em torno do milhão de exemplares semanais e acumula prêmios.
De suas páginas saíram obras-primas do jornalismo como "Hiroshima", de John Hershey, que pela primeira vez foi o tema único de uma edição, em 31 de agosto de 1946; a cobertura que Hannah Arendt fez do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, cinco capítulos em 1963; "A Sangue Frio", relato de Truman Capote dividido em quatro capítulos, em 1965; e, mais recentemente, a série de Seymour M. Hersh que revelou o escândalo de Abu Ghraib, entre outras.
Também na literatura. Um jovem chamado Holden Caulfield (que viraria o protagonista de "O Apanhador no Campo de Centeio") fez sua primeira aparição no conto "Slight Rebellion Off-Madison", de um tal J.D. Salinger, em 21 de dezembro de 1946. Edmund Wilson, John Updike e Woody Allen, entre outros, devem seu pontapé inicial à revista.
Foi aqui que Dorothy Parker fez sua casa desde o número 1 (diz a lenda que, no primeiro ano, no auge da crise de vendas, foi cobrada por Ross por um artigo que não escreveu; e respondeu: "Alguém estava usando o lápis"). Foi aqui que Pauline Kael, a crítica das críticas de cinema, virou Pauline Kael (ao pedir para sair, nos anos 90, a resenhista diria que a melhor parte da aposentadoria era não ser mais obrigada a assistir a filmes de Oliver Stone).
E muito mais. Na verdade, e tudo o mais, agora ao alcance de nosso mouse. Temos um encontro marcado em 11 anos e meio.


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