|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"Lugares que Não Conheço, Pessoas que Nunca Vi"
Trama fragmentada lembra fissuras da paisagem do Rio
Primeiro romance de Cecilia Giannetti é movido pelas esquisitices do tédio
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Lugares que Não Conheço, Pessoas que
Nunca Vi", de Cecilia Giannetti, colunista da Folha, são justamente os lugares
que conhecemos e as pessoas
que sempre vemos. Aqueles
mesmos lugares e pessoas que,
quando resolvemos olhá-los a
partir de um lapso fora do tempo convencional, ou a partir de
uma brecha no nosso redundante cotidiano, de repente nos
parecem os lugares e as pessoas
mais estranhos que poderíamos imaginar.
É como olhar para o próprio
parceiro, no caso do romance,
um poeta magricelo que arrasta
os chinelos pela casa, e pensar:
"Como vim parar aqui? Quem é
essa pessoa com quem eu durmo todas as noites?".
Cecilia Giannetti parte de
perspectivas de estranhamento
(palavra que significa justamente colocar-se de fora de
uma situação conhecida) para
abordar de frente os fantasmas
que sempre insistimos em varrer para debaixo de nossos fofos tapetes.
Uma repórter de TV vaidosa
e competente sai, numa manhã
normal, para uma entrevista
normal com uma mãe de família numa favela carioca. No
meio da reportagem, aparecem
gritando os dois filhos da mulher que está sendo entrevistada, sangrando, e acabam morrendo baleados no colo da própria mãe.
A jornalista vomita sobre os
corpos, a reportagem é editada
e, a partir daí, o fantasma de um
dos meninos começa a perseguir a repórter em alucinações,
ela abandona totalmente sua
vida anterior, separa-se do poeta magricelo, inicia um romance hipererotizado com o motorista da van que a conduzia para
as reportagens e passa a freqüentar a Central do Tédio, estranho clube montado aleatoriamente, onde indivíduos se
encontram para não fazer nada.
O tédio é mesmo o motor que
dá combustão a esse romance
tão terrível quanto esquisito.
Por causa do tédio, nos acomodamos a nossas mediocridades,
e por causa dele também nos
desacomodamos (burgueses
intelectuais de esquerda) para
nos dedicarmos a uma marginalidade pouco convincente,
na qual não cabemos muito
bem, mas à qual nos agarramos
como saída "glamourosa" da temida normalidade.
Essa é uma das questões lançadas pelo romance, cuja trama
fragmentária, desalinhavada,
lembra justamente as fissuras
da paisagem e da vida no Rio:
uma cidade simultaneamente
linda e violenta, terra arrasada
e terra de promessas de felicidade, onde a classe média pensante não consegue encontrar
um lugar. Se faz alguma coisa, é
para livrar-se das culpas; se não
faz nada, é hipócrita. Se tenta se
proteger, é condescendente; se
não tenta, é leviana.
A repórter, depois de ser catapultada pela realidade, aferra-se à fé no desespero: "Mas a
Central do Tédio não condena a
fé cega em projetos desesperados. Ainda que tudo sejam apenas ruínas". Giannetti escreve
um romance sobre ruínas, em
cima das ruínas de uma cidade
e de pessoas que um dia foi possível conhecer. O problema é
que também a linguagem do romance, na sua fé desesperada
em mostrar esta condição insolúvel, às vezes se paralisa no
elogio estilizado das margens
do sistema. Difícil saber se há
solução para isso.
LUGARES QUE NÃO CONHEÇO,
PESSOAS QUE NUNCA VI
Autor: Cecilia Giannetti
Editora: Agir
Quanto: R$ 34,90 (230 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Vitrine Próximo Texto: Crítica/"Oscar Niemeyer": Livro revê a heróica arquitetura brasileira Índice
|