São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2007

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Crítica/"Lugares que Não Conheço, Pessoas que Nunca Vi"

Trama fragmentada lembra fissuras da paisagem do Rio

Primeiro romance de Cecilia Giannetti é movido pelas esquisitices do tédio

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Lugares que Não Conheço, Pessoas que Nunca Vi", de Cecilia Giannetti, colunista da Folha, são justamente os lugares que conhecemos e as pessoas que sempre vemos. Aqueles mesmos lugares e pessoas que, quando resolvemos olhá-los a partir de um lapso fora do tempo convencional, ou a partir de uma brecha no nosso redundante cotidiano, de repente nos parecem os lugares e as pessoas mais estranhos que poderíamos imaginar.
É como olhar para o próprio parceiro, no caso do romance, um poeta magricelo que arrasta os chinelos pela casa, e pensar: "Como vim parar aqui? Quem é essa pessoa com quem eu durmo todas as noites?".
Cecilia Giannetti parte de perspectivas de estranhamento (palavra que significa justamente colocar-se de fora de uma situação conhecida) para abordar de frente os fantasmas que sempre insistimos em varrer para debaixo de nossos fofos tapetes.
Uma repórter de TV vaidosa e competente sai, numa manhã normal, para uma entrevista normal com uma mãe de família numa favela carioca. No meio da reportagem, aparecem gritando os dois filhos da mulher que está sendo entrevistada, sangrando, e acabam morrendo baleados no colo da própria mãe.
A jornalista vomita sobre os corpos, a reportagem é editada e, a partir daí, o fantasma de um dos meninos começa a perseguir a repórter em alucinações, ela abandona totalmente sua vida anterior, separa-se do poeta magricelo, inicia um romance hipererotizado com o motorista da van que a conduzia para as reportagens e passa a freqüentar a Central do Tédio, estranho clube montado aleatoriamente, onde indivíduos se encontram para não fazer nada.
O tédio é mesmo o motor que dá combustão a esse romance tão terrível quanto esquisito. Por causa do tédio, nos acomodamos a nossas mediocridades, e por causa dele também nos desacomodamos (burgueses intelectuais de esquerda) para nos dedicarmos a uma marginalidade pouco convincente, na qual não cabemos muito bem, mas à qual nos agarramos como saída "glamourosa" da temida normalidade.
Essa é uma das questões lançadas pelo romance, cuja trama fragmentária, desalinhavada, lembra justamente as fissuras da paisagem e da vida no Rio: uma cidade simultaneamente linda e violenta, terra arrasada e terra de promessas de felicidade, onde a classe média pensante não consegue encontrar um lugar. Se faz alguma coisa, é para livrar-se das culpas; se não faz nada, é hipócrita. Se tenta se proteger, é condescendente; se não tenta, é leviana.
A repórter, depois de ser catapultada pela realidade, aferra-se à fé no desespero: "Mas a Central do Tédio não condena a fé cega em projetos desesperados. Ainda que tudo sejam apenas ruínas". Giannetti escreve um romance sobre ruínas, em cima das ruínas de uma cidade e de pessoas que um dia foi possível conhecer. O problema é que também a linguagem do romance, na sua fé desesperada em mostrar esta condição insolúvel, às vezes se paralisa no elogio estilizado das margens do sistema. Difícil saber se há solução para isso.


LUGARES QUE NÃO CONHEÇO, PESSOAS QUE NUNCA VI
Autor: Cecilia Giannetti
Editora: Agir
Quanto: R$ 34,90 (230 págs.)
Avaliação: bom



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