São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2007

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DRAUZIO VARELLA

Os sabiás de São Paulo


Se gozam da liberdade de voar, por que razão escolhem a cidade barulhenta e poluída?

MINHA TERRA não tem palmeiras, mas como cantam os sabiás.
Se o macho só se dá ao trabalho de cantar porque a música enternece o coração feminino, como afirmam os ornitólogos, o sabiá é o mais mulherengo dos pássaros. Antes das quatro da manhã, enquanto a cidade vive os últimos momentos de tranqüilidade, já começam: um daqui, outro ao longe, num trinado melódico interrompido por pausas longas, até o dia clarear.
No meio de vozes tão semelhantes, que sutilezas o ouvido feminino é capaz de discernir na hora de escolher o pretendente?
Quando os demais pássaros despertam e os pontos de ônibus se enchem de trabalhadores ensimesmados, ainda é possível ouvir sua música inconfundível no alto das árvores. O frenesi dos motores e das buzinas não consegue intimidá-los.
Pouco mais tarde, movidos pela fome, dão o ar da graça nas praças, nos jardins das casas e até nas calçadas mais ermas, saltando ágeis com as pernas juntas para ciscar a terra com o cuidado de baixar a cabeça para bicar o alimento sem perder de vista os transeuntes. À menor desconfiança, colocam-se em posição de alerta com o peito alaranjado protraído e alçam vôo na direção de um lugar seguro.
Alimentados, amoitam-se quietinhos sabe Deus onde. Passam o dia como se não existissem, à espera do fim de tarde para reiniciar a cantoria. Nessas horas de reclusão, dormem para compensar a boemia da madrugada? Namoram as parceiras conquistadas pelo talento musical?
Não havia sabiás no bairro em que passei a infância. O Brás era cinzento, com ruas de paralelepípedo, muros de fábrica, operários com marmitas e criançada na rua. Quem quisesse descansar os olhos num verde precisava andar até o largo de Santo Antonio, único espaço com árvores plantadas.
Só os pardais ousavam viver em nossa vizinhança. Faziam ninhos nos telhados das casas e corriam atrás das migalhas de pão que atirávamos para atraí-los, sempre ariscos, prontos para bater asas. Eu os achava graciosos, mas não me emocionavam: pardais só sabem piar.
Tio Constantino tinha um viveiro repleto de canários do reino. No mês de junho, ele apartava os casais em gaiolas com ninhos. Quando os filhotes nasciam, eu ajudava a alimentá-los com uma papa preparada com leite, pão e gema de ovo. Depois, era uma alegria vê-los crescidos, amarelinhos, com penas cinzentas nas asas e na cabeça, voando de um poleiro a outro.
Os canários, sim, eram exímios cantores. Quando um se punha a cantar, os outros disparavam com fúria; chegavam a perder o fôlego para sobrepujá-lo. As vozes melosas das novelas de rádio que as mulheres escutavam enquanto cumpriam as obrigações diárias nas casas coletivas não os fazia calar.
Quando meu pai contava que, no Brás dos tempos, dele a molecada nadava no Tietê e que havia tico-ticos, sabiás, rolinhas, bem-te-vis, azulões e bicos-de-lacre nas ruas do bairro, eu morria de inveja. Imaginava como deviam ser felizes as crianças com um rio para nadar e passarinhos para ver.
A cidade cresceu, plantou árvores, os meninos abandonaram os estilingues, companheiros inseparáveis de outrora, e os pássaros retornaram em bandos. Da janela do apartamento em que moro, a 500 metros da avenida Ipiranga, no centro de São Paulo, além dos sabiás, posso acompanhar o vôo rasante das andorinhas, escutar a algazarra infernal das maritacas, ver sanhaços de plumagem azul, chupins negros que põem seus ovos nos ninhos dos tico-ticos, beija-flores de asas invisíveis parados no ar feito miniaturas de helicópteros, rolinhas de papo claro e andar desengonçado, bem-te-vis de peito amarelo empoleirados como sentinelas nas antenas de TV. Até alma de gato, ave marrom de tamanho avantajado e rabo comprido, cheguei a ver meses atrás nos galhos da amoreira em frente de casa.
O retorno dos pássaros à cidade é intrigante. Em que paragens se escondiam? Por que decidiram trocar a vida rural pela cidade grande?
Se gozam da liberdade de voar para o sítio que melhor lhes aprouver, por que razão escolhem fixar moradia justamente na cidade barulhenta, congestionada e poluída?
Quieto a observá-los nesta manhã de sábado, imagino que talvez sejam como eu, animais sobretudo urbanos. É provável que encontrem prazer ao admirar paisagens bucólicas e que a paz campestre lhes seja aprazível durante um fim de semana, mas que considerem passar a vida na monotonia previsível do interior, experiência angustiante, insuportável.


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