São Paulo, quinta, 13 de novembro de 1997.




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MÚSICA X VIOLÊNCIA
"Sobrevivendo no Inferno" é o quarto disco de um dos grupos que mais combatem a polícia no país
Racionais fazem 'Canudos da periferia'

XICO SÁ
da Reportagem Local

Contundente e visionário como um Antonio Conselheiro dos negros e excluídos da periferia de São Paulo, o cronista Mano Brown, dos Racionais MC's, volta armado de versículos bíblicos, histórias reais e estatísticas até os dentes.
Um dos primeiros grupos a encarar de fato a violência policial no país, os Racionais chegam ao quarto disco, com gravação independente e perspectiva de venda inédita, na contramão do mundo dito globalizado.
"Sobrevivendo no Inferno", título do trabalho, é uma espécie de saga de Canudos urbana, pois narra o genocídio diário -por morte morrida ou morte matada, como diria o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Holocausto
O discurso que cabe sob medida na definição de "radical" tem o holocausto de sempre, o testemunho ocular e números científicos que mostram como se mata preto e pobre nas sarjetas da periferia, sem direito a reflexos da Lua como nos romances policiais.
Pode até parecer raivoso demais para alguns setores da sociedade, mas Brown diz não ter razão nenhuma de fato para confiar na generosidade nem mesmo no chamado mito do brasileiro cordial.
"Se eu fosse aquele cara/ que se humilha no sinal/ por menos de R$ 1/ minha chance era pouca/ mas se eu fosse aquele moleque de touca/ que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca", diz ele, na música "Capítulo 4, Versículo 3", uma história de oito minutos e nove segundos.
A mesma faixa traz um show de estatísticas recitadas com o sotaque paulistano de Primo Preto, colaborador do disco e uma das vozes mais representativas hoje do rap da cidade de SP.
Shin Shikuma/Folha Imagem
O rapper Mano Brown, dos Racionais MC's, em tarde de autógrafos nas Grandes Galerias (centro de SP)


Os Racionais fazem política pura e têm mais prestígio na periferia, principalmente na zona sul de São Paulo, base do grupo, do que os candidatos que fazem o discurso convencional de "esquerda".
Na eleição de 1994, por exemplo, Luis Inácio Lula da Silva e José Dirceu, que concorriam pelo PT à presidência da República e ao governo de São Paulo, respectivamente, tiveram que fugir de pedradas em um comício na área da Capela do Socorro, na citada zona sul de São Paulo.
Tudo por um motivo simples: a platéia preferia o naturalismo-realista dos versos de Mano Brown e companhia à plataforma eleitoral.
Portishead e Jorge
Com alta voltagem política, os Racionais MC's também fazem música de primeira. Não teriam como envolver milhares de fãs sem um fundo musical de respeito.
A começar por "Jorge da Capadócia", clássico de Jorge Benjor que virou quase uma oração com o grupo de rap paulistano e um fundo Portishead na parada.
Enquanto passa trechos da música "Glory Box" (do Portishead), Mano Brown e companhia recitam, sem a festividade de outros intérpretes da mesma música (uma das mais cantadas de Benjor), a oração ao velho Jorge.
O mesmo Jorge já havia feito a festa em um dos primeiros sucessos dos Racionais, "Fim de Semana no Parque", do disco "Raio X Brasil", em 1994.
Benjor comparece com versos sampleados ("Vamos passear no parque/ deixa o menino brincar/ vou rezar pra esse menino").
A música, bem dentro do universo poético de Jorge Benjor, conta historietas coloquiais de boys e os seus carros (objetos de desejo) sob os jatos de água no final de semana no asfalto ou terra batida das quebradas de São Paulo.
Salmos
Na sua nova temporada no inferno, Mano Brown, Edy Rock, KL Jay e Ice Blue recorrem ao livro bíblico dos "Salmos". "Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da Justiça", dizem, em coro.
Podem parecer religiosos demais. Essa foi a primeira impressão ao ouvir o disco pela primeira vez. Eles fazem, no entanto, uma leitura apocalíptica, em vez do otimismo integrado e lucrativo de algumas igrejas evangélicas fincadas no fundão da zona sul, de onde surgiram os rappers.



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