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Crítica/"Mutum"
Filme de Kogut expõe a opacidade da vida
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"Por que o que acontece acontece?", pergunta o menino
Thiago (com essas palavras ou
com outras, parecidas) a horas
tantas de "Mutum". E talvez seja esta a pergunta que faz todo o
tempo a autora, Sandra Kogut.
Essa é também a raiz de sua
aposta estética: nunca mostrar
o que acontece, o momento
dramático, mas, com o uso contínuo de elipse, valorizar a incidência dos fatos sobre os personagens. Com isso, o "por quê"
substitui o acontecimento, e da
vida se expõe a opacidade.
Tentemos não complicar as
coisas mais do que já são: "Mutum" se passa em um sertão
qualquer, talvez em um tempo
qualquer (tempo antes da histeria das comunicações). Thiago é um dos filhos de um lavrador. Um filho melancólico, diga-se, que tentará entender as
muitas perdas que lhe cabem
na vida: do tio, da cadela, do irmão, dos lugares, do pai etc.
A vida não é feita de adições,
mas de supressões, como se o
mundo infantil começasse pleno para, aos poucos, se esvaziar.
Desse vazio, dessas promessas
de que o mundo nos enche para
depois nos desiludir. Eis então
um olhar bem pouco romântico da infância. E talvez sua localização seja bem mais exata
do que parece num primeiro
momento: o lugar de "Mutum"
é a infância, isto é, a perda.
O segundo tema relevante é o
deslocamento. Ou exílio. Pois é
isso que Thiago verá o tempo
todo (do tio, do pai) ou viverá.
Viver é também deixar o seu lugar, embora esse deslocamento
nem sempre seja experimentado como perda. Ele é, no mais,
uma fatalidade, que coincide
com o tornar-se homem (não
deixa de ser curioso, pois na família exogâmica quem circula
é, tradicionalmente, a mulher:
aqui, é sempre o homem).
Existe, por fim, o tema do
olhar. Ou antes, da incapacidade de ver. Não por acaso, o mal
do menino está nos olhos: a
opacidade do mundo é antes de
tudo física. Não é impossível
que todo o filme se organize em
torno da luta para entender por
que o que acontece acontece e a
dor da incompreensão. Talvez
o olhar, se corrigido, se revele,
ao final, mais uma ilusão.
Isso não saberemos, até porque este é um filme que se pergunta sobre o "por quê" ao mesmo tempo em que suprime as
coisas. A idéia é mais completa
do que a realização (onde se
destaca uma ótima direção de
arte), dada a dificuldade do desafio que se impôs Kogut.
Segurar um filme dando ênfase aos tempos fracos implica,
por vezes, confundir momentos baixos da existência com
buracos narrativos, pois o cinema é, primeiro, uma arte de registro do acontecer, antes de
ser questionamento dos fenômenos. Nessas ocasiões, "Mutum" perde intensidade. Nada
grave: se o cinema brasileiro
atual padece, com enorme freqüência, de obviedade no partido tomado, a autora e seus colaboradores assumem o risco de
uma bela aposta feita não no escuro, mas com plena consciência do quanto se tem a caminhar neste mundo perigoso.
MUTUM
Direção: Sandra Kogut
Produção: Brasil, 2006
Com: Thiago da Silva Mariz, Wallison Felipe Leal Barros
Onde: pré-estréia hoje, às 19h, no Cine Bombril; em cartaz a partir de
quinta, em São Paulo e no Rio
Avaliação: bom
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