São Paulo, terça-feira, 13 de novembro de 2007

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Crítica/"Mutum"

Filme de Kogut expõe a opacidade da vida

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Por que o que acontece acontece?", pergunta o menino Thiago (com essas palavras ou com outras, parecidas) a horas tantas de "Mutum". E talvez seja esta a pergunta que faz todo o tempo a autora, Sandra Kogut.
Essa é também a raiz de sua aposta estética: nunca mostrar o que acontece, o momento dramático, mas, com o uso contínuo de elipse, valorizar a incidência dos fatos sobre os personagens. Com isso, o "por quê" substitui o acontecimento, e da vida se expõe a opacidade.
Tentemos não complicar as coisas mais do que já são: "Mutum" se passa em um sertão qualquer, talvez em um tempo qualquer (tempo antes da histeria das comunicações). Thiago é um dos filhos de um lavrador. Um filho melancólico, diga-se, que tentará entender as muitas perdas que lhe cabem na vida: do tio, da cadela, do irmão, dos lugares, do pai etc.
A vida não é feita de adições, mas de supressões, como se o mundo infantil começasse pleno para, aos poucos, se esvaziar.
Desse vazio, dessas promessas de que o mundo nos enche para depois nos desiludir. Eis então um olhar bem pouco romântico da infância. E talvez sua localização seja bem mais exata do que parece num primeiro momento: o lugar de "Mutum" é a infância, isto é, a perda.
O segundo tema relevante é o deslocamento. Ou exílio. Pois é isso que Thiago verá o tempo todo (do tio, do pai) ou viverá.
Viver é também deixar o seu lugar, embora esse deslocamento nem sempre seja experimentado como perda. Ele é, no mais, uma fatalidade, que coincide com o tornar-se homem (não deixa de ser curioso, pois na família exogâmica quem circula é, tradicionalmente, a mulher: aqui, é sempre o homem).
Existe, por fim, o tema do olhar. Ou antes, da incapacidade de ver. Não por acaso, o mal do menino está nos olhos: a opacidade do mundo é antes de tudo física. Não é impossível que todo o filme se organize em torno da luta para entender por que o que acontece acontece e a dor da incompreensão. Talvez o olhar, se corrigido, se revele, ao final, mais uma ilusão.
Isso não saberemos, até porque este é um filme que se pergunta sobre o "por quê" ao mesmo tempo em que suprime as coisas. A idéia é mais completa do que a realização (onde se destaca uma ótima direção de arte), dada a dificuldade do desafio que se impôs Kogut.
Segurar um filme dando ênfase aos tempos fracos implica, por vezes, confundir momentos baixos da existência com buracos narrativos, pois o cinema é, primeiro, uma arte de registro do acontecer, antes de ser questionamento dos fenômenos. Nessas ocasiões, "Mutum" perde intensidade. Nada grave: se o cinema brasileiro atual padece, com enorme freqüência, de obviedade no partido tomado, a autora e seus colaboradores assumem o risco de uma bela aposta feita não no escuro, mas com plena consciência do quanto se tem a caminhar neste mundo perigoso.


MUTUM
Direção:
Sandra Kogut
Produção: Brasil, 2006
Com: Thiago da Silva Mariz, Wallison Felipe Leal Barros
Onde: pré-estréia hoje, às 19h, no Cine Bombril; em cartaz a partir de quinta, em São Paulo e no Rio
Avaliação: bom


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