São Paulo, quinta-feira, 13 de dezembro de 2001

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ARTES PLÁSTICAS

Tomie Ohtake mostra rumos da abstração no Brasil

TIAGO MESQUITA
CRÍTICO DA FOLHA

Na Quarta Bienal Internacional de São Paulo, em 1957, a presença ostensiva da abstração informal causou barulho. Naquele momento, a corrente de inspiração abstrata e geométrica também ganhava densidade no Brasil. Muitos encaravam o tachismo, protagonista da principal exposição no país, com resistência, receio ou até como ameaça.
Em um país tão dado à descontinuidade, críticos e artistas mostravam sua preocupação com a recepção acrítica desses procedimentos e discussões da Europa e dos EUA do pós-guerra. Observando a trajetória da retrospectiva de Tomie Ohtake, um dos nomes mais conhecidos da abstração informal brasileira, notamos que aqui pintura abstrata mais gestual parece ter tomado rumo bem diverso da matriz européia.
Sua pintura não buscava a "desrepressão" da subjetividade pelo gesto espontâneo, como o tachismo francês. Lá os artistas trabalhavam de maneira vigorosa e imediata, deixando forças inconscientes aflorarem e tomarem as rédeas, evitando qualquer forma mais castradora de racionalidade.
Menos espontaneísta, Tomie Ohtake privilegia o momento da execução da obra sobre sua ideação, mas de maneira mais pausada. De certo modo, ela procura nesse procedimento algo em que suas paisagens já se mostravam interessadas. Uma reconciliação entre zonas de cor distintas, que configurassem um corpo uno e apaziguado na tela.
Em seus primeiros trabalhos abstratos, quatro regiões da mesma cor eram separadas por uma fenda repleta de manchas pequenas, escuras e quebradiças. Tal fronteira poderia demonstrar um certo atrito resultante da irredutibilidade da forma. Mas, ao contrário, essa abertura indica uma maior proximidade entre as regiões de cor. O modo harmônico como elas se relacionam indica o anseio em se reintegrar.
As manchas esmigalhadas da fresta ortogonal poderiam indicar algo de dissolução ou atrito. Sua disposição, em diversas direções e sentidos, evita que elas se choquem com as formas maiores. Elas não exercem peso ou atrito, tentam se encaixar ou demonstram uma circularidade em torno de um eixo centrípeto que restitui uma unidade pacificada do quadro, aproximando e reintegrando todas as partes. Tal aproximação não parte de uma imagem prévia à tela. Sobrepondo lentamente camadas de tinta, ela faz com que as partes se comportem, respeitando a ordem que vai se instituindo.
Em algumas de suas pinturas de 1956, ela marca a superfície da tela com uma camada que dá uma aparência orgânica e fluida ao seu fundo. A tinta atua retirando qualquer gravidade, atribuindo ao quadro uma espacialidade atmosférica. Sobre esse plano as cores aparecem de maneira meio anônima, procurando o seu papel naquela dinâmica. Em planos irregulares, assumem formas evanescentes e quebradiças. As formas mais geométricas sempre se relacionam em correspondência com outra da mesma cor e de mesmo aspecto. Dessa maneira a unidade é novamente evocada. Partidas por uma geometria irregular, elas giram ao redor de uma órbita circular sempre retornando a um centro que as reconcilia com a forma de onde partiram.
As cores diluídas, bem como as formas cindidas e oscilantes, se ressentem da unidade que lhes dava corpo. Os componentes, embora crispados, temem a dispersão. A composição ressalta o papel que formas e cores ocupam em um todo predeterminado. Eles devem renunciar à sua especificidade em nome do equilíbrio.
Trabalhando com um universo mais disperso e fragmentado nos anos 90, a artista parece reforçar mais intensamente essa pacificação. Mais uma vez a artista evita uma ideação que feche a estrutura da tela, aplica as cores na tela procurando um plano virtual que determine o que elas devem fazer.
Novamente, nem o gesto, nem as cores e nem as formas podem aparecer como elementos afirmativos e auto-suficientes. Aqui a subordinação retira toda a presença física mais marcada das tintas, colocando-as a serviço de um plano quase impalpável. A disposição da tinta sugere um primeiro momento de dispersão, seguido de reunificação, quase como se figurasse aí a noção de uma gênese.
Assim, formas e cores se mostram continuamente transitivas entre a abstração e a figuração de um processo de desintegração e reintegração. Os elementos dos trabalhos, longe de se afirmarem, mostram-se pálidos, empenhados continuamente em uma harmonização excessiva. Tanto as formas quanto as cores se furtam a aparecer como elementos singulares, nos informalismos europeu e norte-americano essa potência é central. Tomie se aproxima, de certo modo, dessa dimensão irredutível da matéria, mas não resiste à tentação de compô-la. Colocados na tela, os componentes da pintura devem baixar a voz. Eles acabam realizando movimentos que não são deles.


Retrospectiva Tomie Ohtake
  
Onde: Instituto Tomie Ohtake (r. Coropés, 88, Pinheiros, São Paulo, tel. 0/ xx/11/3873-0618)
Quando: de ter. a dom., das 11h às 20h; até 3/3
Quanto: entrada franca




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