São Paulo, quarta-feira, 14 de janeiro de 2004

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HISTÓRIA

Livro dos pesquisadores Mary Del Priore e Renato Venâncio introduz ao passado do continente e ao legado deixado à América

Esboço realça traços múltiplos da África

 "A espera na fila imensa/e o corpo negro se esqueceu/estava em San Vicente/a cidade e suas luzes"


"San Vicente", de Milton Nascimen to e Fernando Brant

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Impossível contabilizar com quantas mãos e braços se construiu o passado de um continente. Mas quando se trata da América, é seguro afirmar que muitos deles eram negros. Para tentar esboçar essa trajetória, os historiadores Mary del Priore, 51, e Renato Venâncio, 42, acabam de lançar "Ancestrais".
Voltado para o grande público e em linguagem didática, a obra não é uma pesquisa inédita. Foi realizada com base em fontes secundárias (bibliografia), por pesquisadores que não se pretendem africanistas.
O livro tem o mérito de introduzir as diversas populações que habitavam a África na época em que o tráfico de escravos teve início. Entre os séculos 16 e 19, cerca de 11 milhões de africanos vieram para o Novo Mundo -quatro deles para o Brasil.
Mary Del Priore, ex-professora da USP e da PUC-RJ, é autora de "O Mal sobre a Terra -Uma História do Terremoto de Lisboa de 1755" (ed. Topbooks), enquanto Renato Venâncio é professor da Universidade Federal de Ouro Preto, doutor em demografia histórica pela Universidade de Paris 4 - Sorbonne. Leia trechos da entrevista que os dois historiadores deram à Folha.
 

Folha - Quais as dificuldades de se escrever sobre a África?
Resposta -
A maior dificuldade é a falta de bibliografia e a multiplicidade de Áfricas. Só na costa atlântica, foram cerca de 150 reinos por 200 anos. Tivemos que nos valer de bibliotecas na França, Holanda e Inglaterra para poder, minimamente, sintetizar informações que não dissessem respeito só ao tráfico humano.

Folha - Vocês dizem que o "ato inicial da barbárie" foi "fundador de civilização". Como definiriam o legado africano ao Brasil?
Resposta -
Os portugueses aprenderam muito -quase tudo- sobre os trópicos, com os africanos. A casa grande, habitada pelo "grande homem" com sua família, parentela ampla, concubinas e escravas, tal como Gilberto Freyre descreve para o Nordeste, é costume africano. Assim como o dia livre para que os escravos trabalhassem a terra, chamado de "brecha camponesa".

Folha - Qual a característica mais marcante, em termos de cultura política, do grupo nígero-congolês, que teria sido o que mais negros enviou para a América?
Resposta -
A região que compreende a família linguística nígero-congolesa era a mais articulada com o tráfico transsaariano. Essa rede comercial tinha origem no Norte da África, ou seja, nas regiões dominadas pelo Islã. Conforme ressalta Paul Lovejoy ("A Escravidão na África: uma História de suas Transformações"), as sociedades muçulmanas foram responsáveis pela manutenção da antiga tradição escravista, integrando-a ao sistema religioso.
Quando os portugueses alcançaram a região de povos falantes de línguas nígero-congolesas, há muito o tráfico de escravos aí existia. Este foi, então, facilitado devido à presença de reinos centralizados, possuidores de moeda, calendário, estratos sociais definidos, assim como intensa atividade comercial e agrícola.

Folha - Qual a importância do mito de Preste João na imagem histórica que se construiu da África?
Resposta -
Num momento em que os europeus se esforçavam por imaginar a África, o mito do fabuloso reino do Preste João -lugar da fonte da juventude, repleto de pedras preciosas e ouro, governado por um monarca "adorador da cruz", aliado na luta contra o Islã- compunha uma visão positiva.
Entretanto, ao chegar, em 1520, à Abissínia, o padre Francisco Alvarez se deparou com um déspota etíope sem recursos e incapaz de ajudar na luta contra os infiéis. Sem o sustento deste mito "assertivo", a África deslizou para a representação mais preconceituosa e então difundida; terra de gente bestial e selvagem, idólatra e irracional. A generalização dessa última representação acompanhou a ascensão do tráfico de escravos.

Folha - O comportamento das universidades em relação aos estudos africanos está mudando?
Resposta -
Sim. Mas há o risco de se transformar a história da África numa história de traumas consecutivos: o tráfico, a colonização, o apartheid, a mundialização vivida como nova humilhação.


ANCESTRAIS. Autores: Mary del Priore e Renato Venâncio. Editora: Campus. Quanto: R$ 34 (187 págs.)


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