São Paulo, sábado, 14 de janeiro de 2006

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RODAPÉ

Duas lições de rigor

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Nas últimas décadas, a palavra "rigor" se transformou num valor estético derivado do trabalho ensaístico dos poetas concretos, para os quais uma poesia "rigorosa" responde à idéia de que o núcleo duro da linguagem é a materialidade da palavra. Mas o que significa rigor para uma poesia que se propõe a falar da experiência, com sua pluralidade de acasos incontroláveis?
Nesse caso, o poeta Paul Celan forneceu uma definição mais aberta. Para o autor de "Fuga da Morte", a linguagem do rigor "não transfigura, não "poetiza': nomeia e postula, procura delimitar o campo do que é dado e do que é possível. É claro que o motor nunca é aqui a própria linguagem, mas sempre e somente um eu que fala a partir do ângulo particular de sua existência".
Celan vai na contramão dos concretos: se o que alimenta o rigor "nunca é a própria linguagem", temos uma disciplina de outra ordem, o compromisso com um recorte específico do existente, contra o pano de fundo daquilo que o impossibilita.
Voltando ao início, boa parte da poesia brasileira tenta hoje conciliar essas duas lições de rigor, associando precisão formal ao esforço de nomear e postular vivências. Dois exemplos disso são "Périplos", de Simone Homem de Mello, e "Todas as Coisas Pequenas", de Noemi Jaffe. Em "Périplos", aliás, há uma referência cifrada a Celan no poema "A Deus, que não ouve (Tríptico)": "Recontadas/ as amêndoas/ de Antschel,/ uma a uma,// aprender/ com a Tristia/ de Mandelstam/ que a despedida/ é uma ciência".
Celan (cujo nome de família era Antschel), Ossip Mandelstam e vários outros poetas compõem um caderno de leituras que se confunde, pela referência a lugares e paisagens, com uma espécie de caderno de viagens. Os poemas de Simone buscam sempre uma "isca para o olhar", procurando recompor uma perambulação que nunca é contínua ("Abolir alfândegas,/ clãs e destinos.// Sem prós e pós-/tumos e túmulos,/ decepar a rosa/ dos rumos,/ dissipar ventos") e uma identidade que é "só um corpo/ dilacerado/ entre objetos díspares".
Alguns poemas são longos, quase narrativos, mas o que esses périplos nomeiam e postulam não é a experiência opaca do turista diletante, mas aquele "lapso do restante", o resíduo de singularidade que a poesia tenta salvar da vida massificada. Daí a inevitável obscuridade da escrita de Simone -que resiste aos conteúdos assimiláveis a clichês lingüísticos, mas que às vezes, sob o peso de citações que trazem a marca de seu trabalho como tradutora, pode parecer desejo de ostentar erudição.
Completamente diverso é o rigor que se observa em "Todas as Coisas Pequenas". Aqui, o tom é o da fábula infantil e de uma poesia que procura desvelar, na superfície das coisas ínfimas, uma iluminação. Cito as palavras do prefácio de Nuno Ramos: "Todas as coisas pequenas querem virar pensamento. É dessa passagem daquilo que parece miúdo até uma estrutura intelectual, mítica, subjacente, que o trabalho de Noemi tira sua força".
Nessa mitologia do objeto, há operações de permutação em que se troca "o infinito, pelo grão; a eternidade, por um triz; a piedade, pelas coisas; a verdade, pelas palavras".
Sob a simplicidade quase ingênua dessa poesia, existe uma natureza desnaturalizada e uma transcendência intranscendente -como na seqüência de micro-relatos irônicos em que um Deus humilhado encontra seus intérpretes e suas criaturas, ou no "Alfabeto" em que letras deixam de ser um símbolo gráfico arbitrário para adquirir uma necessidade cosmológica ("no princípio era a terra, continente pétreo -e fez-se o t"; "no princípio era o dado girando ao acaso -e fez-se o d").
Parafraseando um de seus poemas, Noemi Jaffe "filosofa, filosofa, mas não tem essência; é purinho plano de imanência" -construindo com delicado rigor aquele "ângulo particular de sua existência" proposto por Celan.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Périplos
   
Autor: Simone Homem de Mello
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 30 (96 págs.)

Todas as Coisas Pequenas
   
Autor: Noemi Jaffe
Editora: Hedra
Quanto: R$ 18 (80 págs.)


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