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RODAPÉ
Duas lições de rigor
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Nas últimas décadas, a palavra "rigor" se transformou
num valor estético derivado do
trabalho ensaístico dos poetas
concretos, para os quais uma poesia "rigorosa" responde à idéia de
que o núcleo duro da linguagem é
a materialidade da palavra. Mas o
que significa rigor para uma poesia que se propõe a falar da experiência, com sua pluralidade de
acasos incontroláveis?
Nesse caso, o poeta Paul Celan
forneceu uma definição mais
aberta. Para o autor de "Fuga da
Morte", a linguagem do rigor
"não transfigura, não "poetiza':
nomeia e postula, procura delimitar o campo do que é dado e do
que é possível. É claro que o motor nunca é aqui a própria linguagem, mas sempre e somente um
eu que fala a partir do ângulo particular de sua existência".
Celan vai na contramão dos
concretos: se o que alimenta o rigor "nunca é a própria linguagem", temos uma disciplina de
outra ordem, o compromisso
com um recorte específico do
existente, contra o pano de fundo
daquilo que o impossibilita.
Voltando ao início, boa parte da
poesia brasileira tenta hoje conciliar essas duas lições de rigor, associando precisão formal ao esforço de nomear e postular vivências. Dois exemplos disso são "Périplos", de Simone Homem de
Mello, e "Todas as Coisas Pequenas", de Noemi Jaffe. Em "Périplos", aliás, há uma referência cifrada a Celan no poema "A Deus,
que não ouve (Tríptico)": "Recontadas/ as amêndoas/ de Antschel,/ uma a uma,// aprender/
com a Tristia/ de Mandelstam/
que a despedida/ é uma ciência".
Celan (cujo nome de família era
Antschel), Ossip Mandelstam e
vários outros poetas compõem
um caderno de leituras que se
confunde, pela referência a lugares e paisagens, com uma espécie
de caderno de viagens. Os poemas
de Simone buscam sempre uma
"isca para o olhar", procurando
recompor uma perambulação
que nunca é contínua ("Abolir alfândegas,/ clãs e destinos.// Sem
prós e pós-/tumos e túmulos,/ decepar a rosa/ dos rumos,/ dissipar
ventos") e uma identidade que é
"só um corpo/ dilacerado/ entre
objetos díspares".
Alguns poemas são longos, quase narrativos, mas o que esses périplos nomeiam e postulam não é
a experiência opaca do turista diletante, mas aquele "lapso do restante", o resíduo de singularidade
que a poesia tenta salvar da vida
massificada. Daí a inevitável obscuridade da escrita de Simone
-que resiste aos conteúdos assimiláveis a clichês lingüísticos,
mas que às vezes, sob o peso de citações que trazem a marca de seu
trabalho como tradutora, pode
parecer desejo de ostentar erudição.
Completamente diverso é o rigor que se observa em "Todas as
Coisas Pequenas". Aqui, o tom é o
da fábula infantil e de uma poesia
que procura desvelar, na superfície das coisas ínfimas, uma iluminação. Cito as palavras do prefácio de Nuno Ramos: "Todas as
coisas pequenas querem virar
pensamento. É dessa passagem
daquilo que parece miúdo até
uma estrutura intelectual, mítica,
subjacente, que o trabalho de
Noemi tira sua força".
Nessa mitologia do objeto, há
operações de permutação em que
se troca "o infinito, pelo grão; a
eternidade, por um triz; a piedade, pelas coisas; a verdade, pelas
palavras".
Sob a simplicidade quase ingênua dessa poesia, existe uma natureza desnaturalizada e uma
transcendência intranscendente
-como na seqüência de micro-relatos irônicos em que um Deus
humilhado encontra seus intérpretes e suas criaturas, ou no "Alfabeto" em que letras deixam de
ser um símbolo gráfico arbitrário
para adquirir uma necessidade
cosmológica ("no princípio era a
terra, continente pétreo -e fez-se
o t"; "no princípio era o dado girando ao acaso -e fez-se o d").
Parafraseando um de seus poemas, Noemi Jaffe "filosofa, filosofa, mas não tem essência; é purinho plano de imanência" -construindo com delicado rigor aquele
"ângulo particular de sua existência" proposto por Celan.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Périplos
Autor: Simone Homem de Mello
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 30 (96 págs.)
Todas as Coisas Pequenas
Autor: Noemi Jaffe
Editora: Hedra
Quanto: R$ 18 (80 págs.)
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