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Nova tradução da obra de Cervantes remete texto ao português arcaico
JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL
Devidamente acreditadas as
mentiras da ficção, Miguel de
Cervantes não chegou a ser nem o
primeiro tradutor de "Dom Quixote". Antes dele, um mouro inominado foi quem deu formulações castelhanas para as palavras
do árabe Cide Hamete Benengeli,
este sim o verdadeiro autor da
imaginária história de cavalaria
(convém ignorar que "benengeli", em árabe, significa "filho de
cervo", ou seja, Cervantes).
Impossível determinar qual dos
três deu forma ao profético personagem de Sansão Carrasco, que,
referindo-se à história do fidalgo,
afirmou que "não há de haver nação em que não se leia, nem língua em que não se traduza". Mas
fato é que, ao menos no Brasil,
Carrasco acertou novamente, e
chega às livrarias mais uma tradução de "O Engenhoso Fidalgo D.
Quixote da Mancha" (Record, R$
67,90, 574 págs.), feita em parceria
pelo brasileiro Carlos Nougué e o
espanhol José Luis Sánchez.
Desta vez, um trabalho sem dúvida peculiar já no objetivo previamente estabelecido pelos tradutores, o de responder a uma
"equação de três incógnitas: tentar construir a maneira como Cervantes teria escrito no português
de então, sem perder o sabor hispânico, mas de modo compreensível para o leitor atual", nas palavras de Nougué.
Assim, foram em busca de um
português arcaico que ainda sobrevivesse na compreensão dos
leitores, para isso sendo necessária uma ampla pesquisa lingüística que determinasse a época de
nascimento de cada palavra. O resultado é um texto que se aproxima dos arcaísmos e do sabor temporal da primeira tradução ao
português, feita pelos Viscondes
de Castilho e Azevedo em 1876,
mas que resulta muito mais legível e compreensível do que esta.
"Quando alguém escreve, e sobretudo alguém do porte e da altura de Cervantes, está profundamente enraizado em sua época.
Isso não significa só que descreve
o contexto social, político, religioso ou cultural daquela sociedade.
Significa também que descreve
como isso se expressa na linguagem, e é por isso que o tradutor
precisa remetê-la à mesma época", afirma Nougué, justificando
o procedimento que adotaram.
Nesse sentido, diferencia-se da
tradução que preponderou no
Brasil na segunda metade do século passado, feita por Almir de
Andrade e Milton Amado, mas
não tanto da última a ser lançada
antes desta, a de Sérgio Molina,
em 2002. Nenhum trabalho foi
em vão: Sánchez e Nougué se valeram de todas essas traduções
para criar a deles, em alguns casos
"simplesmente tomando algumas
das boas soluções encontradas".
Tudo para enfrentar as dificuldades apresentadas pelo texto, do
sem-número de provérbios recitados pela voz popular e sã de
Sancho Pança às constantes e surpreendentes metrificações da linguagem de Cervantes, poética
mesmo na prosa. Afora isso, o dilema de corrigir ou manter os erros gramaticais e anacolutos cometidos pelo próprio autor, sem
falar nos erros de continuidade.
Por enquanto, foi só o primeiro
livro da série, o segundo sendo
prometido ainda para este ano.
Render-se ao clichê e dizer que se
trata de trabalho "quixotesco" pode produzir efeito impreciso. Mas
conhecerá a grandeza de tal definição quem se deparar, palavra
trás palavra, com a beleza e a loucura do inesquecível personagem.
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