São Paulo, sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

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CARLOS HEITOR CONY

Novos tempos, novos símbolos


Dilma Rousseff mandou retirar o crucifixo de seu gabinete. Por ora, nada mais justo e coerente


LI NAS folhas que a presidente Dilma, nesses primeiros dias de governo, mandou retirar o crucifixo de seu gabinete.
No dia seguinte, li nas mesmas folhas que o crucifixo era propriedade do ex-presidente Lula e que Dilma apenas o devolvera a seu dono.
Por ora, e até novo crucifixo (se houver), nada mais justo e coerente. Ela se declarou (e é realmente) a mandatária de todos os brasileiros (Dilma acrescentaria: "e brasileiras"). E os brasileiros e brasileiras vivem num Estado laico, cultivam diversos credos religiosos.
Sendo o crucifixo o símbolo oficial dos cristãos, nem todos são cristãos neste país. Temos muçulmanos, judeus, budistas e ateus, todos governados por ela.
Evidente que em sua vida particular ela poderá manter os símbolos que quiser, religiosos ou não. Ou não ter nenhum: é de seu direito.
Outros presidentes mantiveram o crucifixo, e um deles, não me lembro qual, além do crucifixo, tinha em sua mesa de trabalho a imagem de uma santa de sua devoção. Se a imagem não o ajudou a governar, também não atrapalhou.
O curioso nesta história é que durante a campanha eleitoral, nos milhares de pronunciamentos que fez ou que fizeram por ela, a então candidata Dilma prometeu centenas de medidas, tomou centenas de compromissos, mas não se lembrou, por desnecessidade, de tornar a Presidência laica como o Estado que preside. Bem verdade que um crucifixo a mais ou a menos não modificará a eficiência de seu governo.
É até um prenúncio salutar: se não prometeu tirar o símbolo dos cristãos de seu gabinete, e o devolveu a seu legítimo dono, logo nos primeiros dias após a sua posse, é de se esperar que com presteza igual cumpra aquilo que prometeu, sobretudo no que diz respeito às reformas que, brasileiros e brasileiras esperam que sejam feitas, como a reforma política, a fiscal, a administrativa etc.
Por questão de faixa etária, ando preocupado com o que chamam de "memória recente". Sou capaz de lembrar todo o time do Fluminense de 1938 (Batatais, Moisés e Machado; Santamaría, Brant e Orozimbo; Sobral, Romeu, Russo, Tim e Hércules). Mas não saberia escalar a seleção nacional que jogou a última Copa do Mundo, do ano passado.
Mesmo assim, com as inevitáveis falhas da memória recente, não me lembro de a candidata ter prometido tirar o crucifixo do gabinete presidencial, mas lembro as inúmeras vezes em que ela, embora interessada no voto de todos, declarando-se cristã, e mais do que cristã, católica, persignou-se em público e foi ao santuário de Nossa Senhora Aparecida, para mostrar aos eleitores e eleitoras que não iria legalizar o aborto -como todos sabem, e eu até agora não esqueci, questões religiosas, em determinado ponto da campanha, foram temas prioritários dos dois candidatos à sucessão de Lula.
No tempo do Estado Novo, era comum (mas não obrigatório) o retrato de Vargas com a faixa presidencial nos estabelecimentos públicos e comerciais, açougues, quitandas, peixarias etc.
Com a queda do ditador, em 1945, naquela estratégia popular de botar as barbas de molho, todos tiraram o retrato da parede e Francisco Alves, o rei da voz, anos depois lançou a marchinha de Marino Pinto que foi a mais cantada no carnaval de 1951: "Bota o retrato do Velho outra vez, bota no mesmo lugar".
As coisas passam, os retratos ficam. Não sei se agora, menos de um mês de poder da nova presidente, já tiraram a foto de Lula das repartições públicas. Não é de lei esta medida, é de costume.
No caso de Dilma, seria justo que todos mantivessem a foto do ex-presidente no mesmo lugar, não à espera de um retorno, em 2014, mas para dar a César o que é de César. Afinal, o que Dilma mais promete e garante é que continuará o governo que rendeu a seu titular 87% de aprovação popular.
Bem verdade que um crucifixo não tem nada a ver com Dilma, Lula, Vargas ou César. Talvez tenha um substituto, talvez não. Certamente será guardado para outra ocasião.
Na antiga União Soviética, os símbolos da Igreja Ortodoxa foram retirados; no lugar deles, botaram fotos de Marx, Lênin, a foice e o martelo, os mais entusiastas chegaram a botar a foto de Stálin, com cachimbo e tudo.
Tudo passa, disse eu aí em cima. Até mesmo o time do Fluminense de 1938, que me fez tricolor para o resto dos meus dias.

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Drauzio Varella


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