São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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"MORTE SEM FIM E OUTROS POEMAS"

Pela tradição, Gorostiza põe modernidade em xeque

RODRIGO PETRONIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Ainda está por ser reavaliada a importância do grupo de poetas e artistas que se uniram em torno da revista "Contemporâneos", que durou de 1928 a 1931, e que leva o seu nome. Contava sobretudo com poetas, como Xavier Villaurrutia, Salvador Novo, Carlos Pellicer, Jorge Cuesta, entre outros.
Por isso, é urgente não apenas situá-los dentro do contexto da literatura de seu país, mas sim na dimensão internacional que lhes é justa, tendo em vista o valor de suas obras e de sua atuação.
À essa época, o México vivia uma efervescência artística. Depois do impulso às letras hispano-americanas dado pelo gênio do nicaragüense Ruben Darío (1867-1916), e tendo às costas antecedentes em terra pátria, como o grande poeta Ramón López Velarde (1888-1921), os artistas desse período encarnam, à sua maneira, um movimento geral de adesão aos modernismos e às vanguardas, então em erupção em diversos países. A cena mexicana contava com uma arte mais oficial e engajada, notadamente conhecida pela pintura muralista de Diego Rivera e Frida Khalo, de um lado, e com o movimento estridentista, inspirado no futurismo italiano, de outro.
Ambas eram de forte teor político, quer valorizando a máquina e o progresso, quer fazendo da arte um veículo nacionalista (dir-se-ia populista) do substrato popular autóctone, ideologicamente afinado com a Revolução Mexicana que se iniciou com a queda da ditadura de Porfírio Díaz, em 1910. Aqui reside a importância do grupo Contemporâneos: traçando um percurso político e estético singular, eles vão fornecer uma terceira via para a arte.
Filiando-se às correntes internacionalistas, estarão mais sintonizados com a vanguarda espanhola, a famosa Geração de 27, e com o modernismo francês e inglês, do que com as propostas de seus conterrâneos.

Modernidade
Não é por outro motivo que serão a bússola da geração subseqüente, que tem em Octavio Paz seu nome mais ilustre. Em certo sentido, irão inserir a literatura mexicana na tradição da alta modernidade, e, podemos dizer, até pôr em xeque esta modernidade, como é o caso da obra pequena, porém essencial, de José Gorostiza (1901-1973), cujo livro seminal "Morte sem Fim" acaba de ser publicada em belíssima edição da Edusp em parceria com o Fundo de Cultura Econômica, com ótima tradução e introdução esclarecedora, assinadas pelo poeta e crítico Horácio Costa.
A poesia de Gorostiza se abre para uma série de abordagens. Sua forte cultura literária, notável em seus ensaios e conferências, e seu trabalho como diplomata lhe facultaram duas coisas essenciais: um conhecimento interno das formas poéticas e uma série de vivências mundanas, que ajudaram a concentrar, na poesia, sua visão de mundo. Assim conferiu força a seus versos, lendo em chave moderna uma tradição que em si mesma já é rica: a lírica ibérica.
Sua obra revisita os romanceiros, de origem medieval, as barcarolas, as albas, as quadras populares, e neles encontra um ingrediente eficaz para a sua matriz poética, que é a melancolia. Recuperada pelo olhar do presente, a tradição não é monumento, mas doce murmúrio da brisa que sopra de tempos imemoriais. O enfermo, o ancião, motivos marítimos, a tempestade, um grupo de mulheres, vaga-lumes, canções marítimas e paisagens portuárias ganham em sua mão uma meditação profunda sobre a nossa transitoriedade e finitude.

Vôo de inteligência
Essa orquestração vai culminar com o longo poema que dá título ao volume, e que é provavelmente uma das peças mais complexas da poesia do século 20. Meditação metafísica sobre a morte, o bem, o mal, os limites da consciência e a torrente vital que ela encerra, colhida na metáfora singela de um copo e o que ele retém. O poema "Morte sem Fim" é um vôo da inteligência que se desencarna e prova os limites da linguagem diante de uma experiência-limite de compreensão do cosmos. Não obstante, já foi comparado a um outro poema também escrito em forma de silva, o "Primero Sueño", da também mexicana Sóror Juana Inés de la Cruz (1651-1695), um dos pontos mais altos da poesia em castelhano.
Não satisfeito em ser moderno e infenso à tola vaidade de querer ser um homem de seu tempo, Gorostiza preferiu ser contemporâneo de todos os tempos, unidos pelo tear infinito da linguagem. Para ela, como sabemos, tempo e espaço pertencem a um outro domínio, que nos transcende e que não pode ser mensurado ou reduzido ao nosso presente pobre e precário.
Assim, sua poesia conseguiu ser, se não eterna, extemporânea, o que talvez seja uma conquista ainda maior.


Morte sem Fim e Outros Poemas
    
Autor: José Gorostiza
Tradução: Horácio Costa
Editora: Edusp/Fundo de Cultura Econômica
Quanto: R$ 40 (232 pág)



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