São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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O "Capital" para preguiçosos

Associated Press
Cartazes com os rostos de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lênin são usados em desfile do Dia do Trabalho no Sri Lanka


CYNARA MENEZES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Só mesmo o autor de uma obra chamada "O Direito à Preguiça" parecia capaz de transformar "O Capital", de Karl Marx (1841-1911), tido como o livro menos lido e mais comentado da história, em algo para se devorar "de uma sentada". E foi o que aconteceu: empenhado em popularizar o catatau marxista de quase 600 páginas, sob o olhar vigilante de Friedrich Engels (1820-1895), Paul Lafargue (1841-1911) enxugou daqui, cortou dali, e chegou ao mágico número de 130 páginas de texto.
Prova de que Lafargue, ao contrário do que se imagina, era um genro e tanto. Francês de origem cubana, casado com uma das três filhas de Marx, Laura, ele se tornou célebre com seu "Direito à Preguiça", de 1880, um dos símbolos da luta pela jornada de oito horas de trabalho.
Há quem diga que defendeu o ócio à revelia do sogro comunista; outros, que o panfleto foi elaborado a partir de anotações do próprio filósofo alemão.
A compilação de "O Capital" por Lafargue, publicada originalmente em 1893 e que está sendo editada agora no Brasil, reúne os mais importantes tópicos do primeiro volume -são três ao todo. Leitor ávido de romances, Marx sabia ser espinhoso o capítulo inicial de sua obra, em que analisa a mercadoria, mas garantia, no prefácio à primeira edição, em 1867: "Não se poderá alegar contra esse livro dificuldade de compreensão".
Nisso o barbudo que inspirou socialistas do mundo inteiro se equivocou: "O Capital" é considerado difícil até por marxistas. "Eu não li. Não entendo de economia e matemática o suficiente. Além disso, não acho que para ser marxista é preciso ler "O Capital'", defende o deputado federal Roberto Freire, presidente do PPS (Partido Popular Socialista), que um dia já foi PCB (Partido Comunista do Brasil).
"Discordo inteiramente", diz a cientista política Maria Victoria Benevides, que não leu e por isso prefere não se afirmar marxista. "Para ser marxista, no sentido de adepto de uma corrente de pensamento, é óbvio que tem que se ler "O Capital". Não todinho, que eu nem com água-benta em cima consigo, só com intérprete de economia. Aquela linguagem matemática me é estranha, tenho muita dificuldade."
"Tem que ler inteiro, sim. Um clássico diluído é como vinho com água, perde o sabor", defende o filósofo Denis Rosenfield, que leu e gostou. "Alguém disse que a partir de determinado momento os marxistas já não conheciam Marx, porque não tinham lido "O Capital". Viraram marxistas de ouvido. Um marxista que se baseia apenas no "Manifesto Comunista" não sabe do que está falando."
É incrível como um livro com quase 140 anos ainda acende discussões acaloradas. "É chato", afirma o historiador Evaldo Cabral de Mello. "É muito melhor pegar um intérprete atual que o debulhe, que troque em miúdos para o leitor do século 20. Um bom autor moderno, como Raymond Aron (1905-1983), de quem foi publicado recentemente "O Marxismo de Marx", aplaina o caminho."
"Para quem não quer entender a história contemporânea, deve ser uma chatice, mas para quem quer decifrar o capitalismo não é. A chave do mundo contemporâneo continua estando lá", rebate o sociólogo Emir Sader, que conta ter lido os três volumes durante os seminários que aconteceram na USP no final dos anos 60. E ainda assim reconhece a dificuldade. "A gente lia 50 páginas a cada 15 dias. Aí dava."
O filósofo José Arthur Giannotti, que leu o original em alemão ("é mais fácil", afirma), não quis dar entrevista, mas fechou questão: ""O Capital" é capital". E parece ser mesmo, até para leitores insuspeitos como o compositor Tom Zé, que o enfrentou na adolescência.
"A leitura de "O Capital" quando rapazinho provocou em mim um impacto tão profundo quanto o que tive, na maturidade, ao ler o "Bhagavad Gita". Como se antes estivesse no ignoto, no desconhecido, e de repente encontrasse onde pisar", diz. O cineasta Cláudio Assis, de "Amarelo Manga", que estudou economia, não leu o livro todo, mas também gostou. ""O Capital" é muito bacana."
Bacana ou chato, todo mundo concorda que os extratos de Paul Lafargue podem ser muito úteis, embora o leitor comum encontre prazer de fato é no apêndice "Recordações Pessoais sobre Karl Marx", no final do livrinho.
Lá ficamos sabendo que as filhas de Marx o chamavam de "Mouro", por causa de sua tez morena, que prometera a elas escrever um drama sobre os tribunos romanos Caio e Tibério Graco, e que planejava fazer uma obra crítica sobre "A Comédia Humana", de Balzac, logo que terminasse seus trabalhos econômicos. "O Capital" não permitiu que Marx se tornasse um literato.

O CAPITAL - EXTRATOS. Autor: Karl Marx/Paul Lafargue. Tradutor: Abguar Bastos. Editora: Conrad. Quanto: R$ 22 (160 págs.).


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