São Paulo, sexta, 14 de fevereiro de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TELEVISÃO
Verdadeiro desafeto dos Mezengas é uma família de japoneses

MARIANA SCALZO
da Reportagem Local

A união de Bruno (Antônio Fagundes) e Luana (Patrícia Pillar) vai selar hoje à noite, no último capítulo de ``O Rei do Gado'', o início da amizade dos Berdinazzi e Mezenga. As duas famílias italianas foram rivais durante os 200 capítulos -e três gerações- da novela de Benedito Ruy Barbosa, da Globo.
Fora da tela, a história dos Mezenga é um pouco diferente e ainda não teve um acontecimento que promovesse a reconciliação de famílias, mesmo após três gerações.
Na verdade, a família Mezenga, da cidade de Vera Cruz (na região de Marília, a 437 km de São Paulo), tem desavenças com a família Haraguchi, de imigrantes japoneses.
Como na ficção de Barbosa, quando Henrique Mezenga (Leonardo Brício) decide casar com Giovanna Berdinazzi (Letícia Spiller) em 1943, Zoraide Mezenga também desafiou a família ao se unir ao nissei Tadashi Haraguchi, em janeiro de 1953.
``Minha mãe sempre falava que sua vida daria uma novela'', conta Lis Aparecida Mezenga Haraguchi Geyer, 43, filha de Zoraide.
História
Zoraide, filha do italiano Federico Mezenga, conheceu Tadashi quando seu carro quebrou na estrada. Ele foi ajudá-la e começaram a namorar. Ele se encontravam às escondidas por três anos.
O casal fugiu, abrindo mão da herança, para se casar em Aparecida do Norte. Um dos padrinhos foi o jornalista David Nasser, que relatou a história na edição de 14 de fevereiro de 1953 da revista ``O Cruzeiro''.
Tadashi e Zoraide tiveram cinco filhos -Lis, Line, Liane, Linette e Paulo, o único que não leva o nome Mezenga.
``Minha mãe tinha muito orgulho de suas origens. Meu pai registrou o Paulo escondido sem o sobrenome Mezenga'', conta Lis. Atualmente, Paulo reivindica o nome italiano.
Apesar da fuga para assumir o grande amor, a união nipo-italiana teve problemas.
``Tinha os conflitos culturais, como os que Bruno e Luana enfrentaram. Ambos tinham orgulho de suas raças. Na mesa de jantar havia a comida italiana e a japonesa. Meu pai odiava Carnaval, minha mãe fantasiava todos os filhos. Em casa, havia um altar budista. Minha mãe falava alto e gritava da janela, era uma italiana barulhenta. Foi um choque cultural violento. Acho que não se separaram por causa dos filhos e pelo amor que os unia'', lembra Lis.
Rivalidade
A família Berdinazzi também vivia na região, mas não tinha problemas com os Mezenga. No cemitério de Vera Cruz, por coincidência, o jazigo da família Berdinazzi fica ao lado do da família Mezenga.
``Perguntamos até para uns vizinhos, mas ninguém sabe o que aconteceu com os Berdinazzi'', explica Lis.
``A briga entre as duas famílias eu desconheço. Mas sei que as brigas entre meus familiares -Mezenga e Reatto- eram frequentes naquela época'', diz Linette Mezenga Haraguchi, 35, irmã de Lis.
Federico Mezenga, avô de Lis e Linette, foi casado com Ana Reatto, com quem teve três filhos: Zoraide, Antônio e Aparecida. Acreditando em uma possível traição de sua mulher com seu irmão, Mezenga abandonou a família e casou-se com a bóia-fria Maria.
Zoraide foi criada pelos avós paternos, a mãe Ana morreu e Antônio e Aparecida ficaram com os avós maternos. Só se conheceram quando eram adultos e a briga entre as duas famílias pela herança, um pequeno sítio que Zoraide ganhou de um tio, ganhou força.
Herança
A herança que a família dos Mezenga Haraguchi, plantadora de café, deixou para os filhos foi um grande trauma.
``Sou o fruto da discórdia. Tinha de chamar meus avós de tios. Meu pai não visita os irmãos. O ódio passa de geração para geração. Foram muitos anos de análise para superar'', fala Lis, a filha mais velha, que hoje é psiquiatra infantil.
``A gente acha que com o tempo as coisas mudam, mas não consigo me envolver. Cresci ouvindo a história. Não me dou bem com minhas primas. Na missa da minha mãe, por exemplo, minha irmã expulsou a família Haraguchi da igreja, mesmo sem conhecê-la'', lembra.
Lis conta que já tentou promover encontros de família, mas toda vez a velha história vem à tona e a reconciliação não acontece.
``A família só se vê em enterros. É triste, tem muita gente perdida pelo mundo. Demora umas três ou quatro gerações para dissolver as neuroses da família. É um prejuízo para o ser humano amputar sua origem e sua história.''
Homenagem
Segundo Lis e Linette, Zoraide e o autor de ``O Rei do Gado'' cresceram juntos na cidade de Vera Cruz e provavelmente o autor teria feito uma homenagem à amiga Nena, apelido de Zoraide e também nome da personagem de Vera Fischer na primeira fase da trama.
``Na novela `Paraíso' (1982/83), o Benedito já havia feito uma homenagem a Vera Cruz, usando nome de pessoas da cidade em personagens e lembrando antigas histórias locais, como a de José Eleutério, o filho do Diabo (vivido por Kadu Moliterno)'', lembra Lis.
Para Linette, ``O Rei do Gado'' relata fatos regionais que ``só quem vivenciou nesse paraíso caipira poderia passar para a tela uma bela história: lavoura de café, suas riquezas e pragas, morte por agrotóxicos, briga entre fazendeiros pela posse da preciosa terra e da água, como por exemplo o rio das Garças, na região de Vera Cruz -antigo cenário de pescarias.''

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1996 Empresa Folha da Manhã