São Paulo, terça-feira, 14 de março de 2006

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ANÁLISE

Prefiro o desespero à auto-ajuda

NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos versos mais longos e interessantes da literatura brasileira está no poema "Nova Poética", escrito por Manuel Bandeira: "Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: é a vida".
É a vida, e, sem dúvida, é também uma das funções da poesia: ser como a nódoa no brim e fazer o "leitor satisfeito de si dar o desespero".
Mas é exatamente o contrário do que fazem algumas das principais estrelas lançadas na Bienal do Livro, como "100 Coisas para Fazer antes de Morrer", "O que as Mulheres Querem", "A Paz É o Caminho", "Só Depende de Você" ou "Jesus, o Maior Psicólogo que já Existiu", os chamados livros de auto-ajuda.
Minha fantasia é a de que, da mesma forma que os fornos autolimpantes, teclas "turbolimpeza" e freezers "gela-certo", esses livros agem durante a noite, enquanto estamos dormindo, saem das prateleiras e, munidos de aspiradores e vaporizadores, limpam nosso espírito, corrigem nossas falhas e nos fazem despertar limpos, satisfeitos e capazes para enfrentarmos todas as dificuldades da vida.
Faz-se uma apropriação rápida, rasa e indevida de princípios filosóficos que demoraram séculos para ser construídos, que exigiram e continuam a exigir embates emocionais e intelectuais complexos e aquilo se transforma magicamente numa espécie de pequeno exército de palavras de ordem: "busquem mais a sabedoria do que o conhecimento"; "humildade não é passividade"; "pare de ser seu pior inimigo: admita seu sucesso"; "só existe o aqui e o agora". Listas de tópicos-soldados nos ditando como agir, o que fazer, como lidar, como vencer.
Mas e a sujeira? E o erro? E meu desejo, às vezes incontornável, de perder? A satisfação que os livros de auto-ajuda e, como eles, tantos outros "bens" de consumo oferecem, é sinônimo de saciedade, preenchimento, quando, na verdade, o vazio e a dúvida podem ser muito mais inspiradores. Mas o incômodo já está previsto. Admita-o, ele também faz parte de você. Pronto, até a sujeira é limpinha e já foi levada em consideração pelo conselho máximo dos autores de auto-ajuda, que ficam no alto de um mirante gigantesco, aparelhados de grandes vassouras, espanando meus medos e dizendo que eles são normais.
Ao invés do desespero, que, segundo Bandeira, deve ser o combustível da arte e do pensamento, os livros de auto-ajuda anunciam a oferta ilimitada de esperança, esse falso bem que, como já dizia Espinosa, busca a satisfação fora de si e é o melhor companheiro do medo. A faxina do medo pela esperança é só uma maneira de revigorá-lo, como se a esperança fosse uma patroa brava maltratando constantemente a criada-medo com a única finalidade de protegê-la para que ela fique cada vez mais gorda e os livros de auto-ajuda vendam cada vez mais.
Prefiro o desespero.


Noemi Jaffe é autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (ed. Hedra)


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