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ANÁLISE
Prefiro o desespero à auto-ajuda
NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um dos versos mais longos e
interessantes da literatura
brasileira está no poema "Nova
Poética", escrito por Manuel Bandeira: "Sai um sujeito de casa com
a roupa de brim branco muito
bem engomada e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma
nódoa de lama: é a vida".
É a vida, e, sem dúvida, é também uma das funções da poesia:
ser como a nódoa no brim e fazer
o "leitor satisfeito de si dar o desespero".
Mas é exatamente o contrário
do que fazem algumas das principais estrelas lançadas na Bienal do
Livro, como "100 Coisas para Fazer antes de Morrer", "O que as
Mulheres Querem", "A Paz É o
Caminho", "Só Depende de Você" ou "Jesus, o Maior Psicólogo
que já Existiu", os chamados livros de auto-ajuda.
Minha fantasia é a de que, da
mesma forma que os fornos autolimpantes, teclas "turbolimpeza"
e freezers "gela-certo", esses livros
agem durante a noite, enquanto
estamos dormindo, saem das prateleiras e, munidos de aspiradores
e vaporizadores, limpam nosso
espírito, corrigem nossas falhas e
nos fazem despertar limpos, satisfeitos e capazes para enfrentarmos todas as dificuldades da vida.
Faz-se uma apropriação rápida,
rasa e indevida de princípios filosóficos que demoraram séculos
para ser construídos, que exigiram e continuam a exigir embates
emocionais e intelectuais complexos e aquilo se transforma magicamente numa espécie de pequeno exército de palavras de ordem:
"busquem mais a sabedoria do
que o conhecimento"; "humildade não é passividade"; "pare de
ser seu pior inimigo: admita seu
sucesso"; "só existe o aqui e o agora". Listas de tópicos-soldados
nos ditando como agir, o que fazer, como lidar, como vencer.
Mas e a sujeira? E o erro? E meu
desejo, às vezes incontornável, de
perder? A satisfação que os livros
de auto-ajuda e, como eles, tantos
outros "bens" de consumo oferecem, é sinônimo de saciedade,
preenchimento, quando, na verdade, o vazio e a dúvida podem
ser muito mais inspiradores. Mas
o incômodo já está previsto. Admita-o, ele também faz parte de
você. Pronto, até a sujeira é limpinha e já foi levada em consideração pelo conselho máximo dos
autores de auto-ajuda, que ficam
no alto de um mirante gigantesco,
aparelhados de grandes vassouras, espanando meus medos e dizendo que eles são normais.
Ao invés do desespero, que, segundo Bandeira, deve ser o combustível da arte e do pensamento,
os livros de auto-ajuda anunciam
a oferta ilimitada de esperança,
esse falso bem que, como já dizia
Espinosa, busca a satisfação fora
de si e é o melhor companheiro do
medo. A faxina do medo pela esperança é só uma maneira de revigorá-lo, como se a esperança
fosse uma patroa brava maltratando constantemente a criada-medo com a única finalidade de
protegê-la para que ela fique cada
vez mais gorda e os livros de auto-ajuda vendam cada vez mais.
Prefiro o desespero.
Noemi Jaffe é autora de "Folha Explica
Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (ed. Hedra)
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