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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Irmãos e amantes
Entende-se que a "sexualização" da família excede um limite que a razão
não parece capaz de explicar
ANTÔNIO CICERO, em carta a esta Folha, acusa-me de erros,
imprecisões e confusões na
minha coluna da passada semana.
Discordo de Cicero. Diz ele que a
comparação entre Bush e Bin Laden é produto da minha cabeça.
Não é. Quando se denuncia a aliança, como Cicero fez, entre a "demagogia reacionária e religiosa" (da
administração americana) e o "terrorismo reacionário e religioso",
não é preciso dar nome aos bichos
para sabermos do que falamos.
Mas a discórdia central é outra, e
bem mais interessante. Cicero afirma que toda a gente tem direito a
seus sentimentos, embora a política seja um espaço de regras universais e racionais. Cicero tem uma
capacidade, única na história do
pensamento, de destrinçar o racional do emocional, acreditando que
uma ordem pública se baseia, tão
só, em preceitos claros e distintos.
Não estou seguro disso. E um caso
recente talvez ilumine o problema.
A Europa tem discutido a história de Patrick e Susan Stürbing,
dois irmãos que se apaixonaram,
procriaram (quatro filhos) e que
agora desejam derrubar a lei que
proíbe o incesto. Fato: Patrick e
Susan só se conheceram na idade
adulta. Mas, ao contrário das personagens de Eça de Queirós, eles
conheciam a filiação. Que atitude
deve ter a Corte Constitucional da
Alemanha? Proibir ou tolerar?
Não vale a pena repetir o óbvio:
que existe uma diferença entre o
incesto não consentido (melhor
chamar "violação") e o incesto consentido entre adultos, como é o caso. Mas, apesar da diferença, também não deixa de ser verdade que
existe nas sociedades ocidentais, e
não apenas nestas, um fundo de repulsa emocional perante a idéia de
que dois irmãos; uma mãe e um filho; um pai e uma filha possam viver como amantes. E quando eu falo em "repulsa emocional", pretendo significar precisamente isso:
uma reação instintiva que não tem
nenhuma explicação racional.
Claro que podemos tentar encontrar uma. Para muitos, o incesto é um tabu cultural, sem sentido
para civilizações passadas (como a
egípcia). Para outros, o incesto é
um tabu religioso, expressamente
proibido na Bíblia. Outros dirão
que o incesto é reprovado por motivos essencialmente evolutivos:
desde os primórdios da civilização
que os seres humanos desenvolvem uma repulsa pelos seus e uma
atração pelos outros. E haverá
sempre alguém a lembrar o argumento biológico fulcral: a possibilidade dos filhos de relação incestuosa desenvolverem anomalias
congênitas, como aliás sucedeu
com dois filhos do "casal" Stürbing.
Infelizmente, nenhuma destas
explicações encerra o debate. E
mesmo que o "casal" Stürbing se tivesse recusado a ter filhos desde o
início, a repulsa emocional continuaria. No fundo, é essa repulsa
que penaliza o incesto na Alemanha (e no Reino Unido): porque se
entende que a "sexualização" da família excede um limite que a razão
é incapaz de explicar, mas que os
sentimentos da maioria justificam
plenamente. Serão os alemães, ou
os ingleses, exemplos pré-modernos de romantismo reacionário?
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