São Paulo, quarta-feira, 14 de março de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Irmãos e amantes

Entende-se que a "sexualização" da família excede um limite que a razão não parece capaz de explicar

ANTÔNIO CICERO, em carta a esta Folha, acusa-me de erros, imprecisões e confusões na minha coluna da passada semana. Discordo de Cicero. Diz ele que a comparação entre Bush e Bin Laden é produto da minha cabeça. Não é. Quando se denuncia a aliança, como Cicero fez, entre a "demagogia reacionária e religiosa" (da administração americana) e o "terrorismo reacionário e religioso", não é preciso dar nome aos bichos para sabermos do que falamos.
Mas a discórdia central é outra, e bem mais interessante. Cicero afirma que toda a gente tem direito a seus sentimentos, embora a política seja um espaço de regras universais e racionais. Cicero tem uma capacidade, única na história do pensamento, de destrinçar o racional do emocional, acreditando que uma ordem pública se baseia, tão só, em preceitos claros e distintos. Não estou seguro disso. E um caso recente talvez ilumine o problema.
A Europa tem discutido a história de Patrick e Susan Stürbing, dois irmãos que se apaixonaram, procriaram (quatro filhos) e que agora desejam derrubar a lei que proíbe o incesto. Fato: Patrick e Susan só se conheceram na idade adulta. Mas, ao contrário das personagens de Eça de Queirós, eles conheciam a filiação. Que atitude deve ter a Corte Constitucional da Alemanha? Proibir ou tolerar?
Não vale a pena repetir o óbvio: que existe uma diferença entre o incesto não consentido (melhor chamar "violação") e o incesto consentido entre adultos, como é o caso. Mas, apesar da diferença, também não deixa de ser verdade que existe nas sociedades ocidentais, e não apenas nestas, um fundo de repulsa emocional perante a idéia de que dois irmãos; uma mãe e um filho; um pai e uma filha possam viver como amantes. E quando eu falo em "repulsa emocional", pretendo significar precisamente isso: uma reação instintiva que não tem nenhuma explicação racional.
Claro que podemos tentar encontrar uma. Para muitos, o incesto é um tabu cultural, sem sentido para civilizações passadas (como a egípcia). Para outros, o incesto é um tabu religioso, expressamente proibido na Bíblia. Outros dirão que o incesto é reprovado por motivos essencialmente evolutivos: desde os primórdios da civilização que os seres humanos desenvolvem uma repulsa pelos seus e uma atração pelos outros. E haverá sempre alguém a lembrar o argumento biológico fulcral: a possibilidade dos filhos de relação incestuosa desenvolverem anomalias congênitas, como aliás sucedeu com dois filhos do "casal" Stürbing.
Infelizmente, nenhuma destas explicações encerra o debate. E mesmo que o "casal" Stürbing se tivesse recusado a ter filhos desde o início, a repulsa emocional continuaria. No fundo, é essa repulsa que penaliza o incesto na Alemanha (e no Reino Unido): porque se entende que a "sexualização" da família excede um limite que a razão é incapaz de explicar, mas que os sentimentos da maioria justificam plenamente. Serão os alemães, ou os ingleses, exemplos pré-modernos de romantismo reacionário?


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