São Paulo, quarta-feira, 14 de março de 2007

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MARCELO COELHO

Heroísmo à paulistana

Em "Os 12 Trabalhos", filme de Ricardo Elias, o motoboy Heracles vive relativa invisibilidade

HÁ UM conto policial de G. K. Chesterton (1874-1936) chamado "O Homem Invisível", em que uma mansão estritamente vigiada termina sendo lugar de um crime, não me lembro se assalto, assassinato ou coisa pior. O problema do detetive (tratava-se do famoso Padre Brown) era saber como alguém poderia ter entrado e saído da casa sem atrair as atenções de ninguém. Como sempre nas histórias do Padre Brown, a solução é um bocado implausível, mas tem a virtude de subverter nossos hábitos de observação. Não leia o próximo parágrafo se quiser descobrir por si mesmo a solução do conto.
O "homem invisível" era o carteiro, que circulava, sem que ninguém reparasse, nas áreas de serviço da mansão. Bons tempos. Bem que eu avisei: a solução não era das melhores. Não deixava de ser uma homenagem de Chesterton à "Carta Roubada", de Poe, onde também o mais difícil era atinar com o óbvio.
Em "Os 12 Trabalhos", ótimo filme de Ricardo Elias, atualmente em cartaz, é o motoboy Heracles (Sidney Santiago) quem vive esse estado de relativa invisibilidade. Nada mais eloqüente do que o modo com que as pessoas desviam o olhar quando ele se aproxima. Mesmo quando agradecem seus serviços, o "obrigado" soa como "vá embora".
"Nunca mais quero ver a cara dele", diz, muito a propósito, uma personagem do filme. Ela acaba de saber, por intermédio de Heracles, que o ex-namorado exigia de volta um anel que lhe havia dado de presente.
A delicada missão de pegar o anel é um dos "12 trabalhos" que o personagem de Sidney Santiago, a exemplo do herói grego, tem de levar a cabo com o agravante de que tudo será feito ao longo de um dia só.
Não sei dizer até que ponto as aventuras do motoboy se inspiram diretamente nos trabalhos de Hércules: há sempre o risco de um exagero interpretativo nessas coisas. Um gatinho amarelo tem de ser transportado na moto do rapaz; poderia, quem sabe, ser o Leão de Neméia nesse épico urbano em miniatura? Na primeira aventura de Heracles, dois envelopes iguais têm de ser entregues em dois apartamentos vizinhos. Penso nas duas serpentes que o Hércules mitológico estrangulou no berço.
Mas seria errado imaginar que o filme se baseia no jogo irônico entre a grandeza grega e a mesquinhez da vida paulistana. O rosto de Sidney Santiago expressa com perfeição um outro espectro de emoções, que não vai do trágico para o cômico: dedica-se a uma série sutil de passagens entre o orgulho, a timidez, a reserva, o charme e o rancor.
Heracles sofre uma quantidade interminável de pequenas humilhações, seja dos clientes -que o ignoram ou desconfiam dele-, seja dos colegas de trabalho. Dificuldades mínimas -um papel que é preciso carimbar, um elevador que não funciona- põem à prova sua capacidade de improviso.
Estamos num país, ou numa cidade, em que os estereótipos do calor humano, da informalidade tropical, deram lugar a um sistema implacável de regras, que todos seguem com extremo mau humor.
Ao mesmo tempo, é impossível segui-las e a velha mística do "jeitinho" assume com isso características aflitivas. Do mesmo modo que vemos os motoboys trançando loucamente as faixas de uma avenida, importa vencer os entraves do cotidiano por meio de estratégias quase suicidas, à fímbria da lei.
Para Heracles, acaba sendo mínima a diferença entre comportar-se honestamente e ser pego em flagrante por tráfico de drogas. Tudo depende, muitas vezes, da sorte, por mais sincero que seja seu empenho em andar na linha.
A "invisibilidade", assim, é tanto uma experiência de humilhação quanto um mecanismo de sobrevivência. A frase pode parecer metafórica; basta pensar, entretanto, no papel que um capacete desempenha para um motoboy para se ter idéia do quanto, neste filme, literal e poético, documental e imaginário coincidem com extrema elegância. Um exemplo disso, para terminar.
Logo na abertura do filme, há uma frase que lhe pode servir de epígrafe.
O lugar onde uma pessoa vive, diz o protagonista enquanto a câmera mostra um rua de periferia, determina o seu destino. É uma frase verdadeira, em qualquer situação. Mas, dita por um motoboy, preocupado o tempo todo em achar o endereço dos clientes, torna-se especialmente concreta. Com extrema habilidade, o filme se equilibra entre o real e a alegoria, sem se perder nunca no meio do caminho.


coelhofsp@uol.com.br

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