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MARCELO COELHO
Heroísmo à paulistana
Em "Os 12 Trabalhos", filme de Ricardo Elias, o motoboy Heracles vive relativa invisibilidade
HÁ UM conto policial de G. K.
Chesterton (1874-1936)
chamado "O Homem Invisível", em que uma mansão estritamente vigiada termina sendo lugar
de um crime, não me lembro se assalto, assassinato ou coisa pior. O
problema do detetive (tratava-se do
famoso Padre Brown) era saber como alguém poderia ter entrado e
saído da casa sem atrair as atenções
de ninguém. Como sempre nas histórias do Padre Brown, a solução é
um bocado implausível, mas tem a
virtude de subverter nossos hábitos
de observação. Não leia o próximo
parágrafo se quiser descobrir por si
mesmo a solução do conto.
O "homem invisível" era o carteiro, que circulava, sem que ninguém
reparasse, nas áreas de serviço da
mansão. Bons tempos. Bem que eu
avisei: a solução não era das melhores. Não deixava de ser uma homenagem de Chesterton à "Carta Roubada", de Poe, onde também o mais
difícil era atinar com o óbvio.
Em "Os 12 Trabalhos", ótimo filme de Ricardo Elias, atualmente em
cartaz, é o motoboy Heracles (Sidney Santiago) quem vive esse estado
de relativa invisibilidade. Nada mais
eloqüente do que o modo com que as
pessoas desviam o olhar quando ele
se aproxima. Mesmo quando agradecem seus serviços, o "obrigado"
soa como "vá embora".
"Nunca mais quero ver a cara dele", diz, muito a propósito, uma personagem do filme. Ela acaba de saber, por intermédio de Heracles, que
o ex-namorado exigia de volta um
anel que lhe havia dado de presente.
A delicada missão de pegar o anel
é um dos "12 trabalhos" que o personagem de Sidney Santiago, a exemplo do herói grego, tem de levar a cabo com o agravante de que tudo será
feito ao longo de um dia só.
Não sei dizer até que ponto as
aventuras do motoboy se inspiram
diretamente nos trabalhos de Hércules: há sempre o risco de um exagero interpretativo nessas coisas.
Um gatinho amarelo tem de ser
transportado na moto do rapaz; poderia, quem sabe, ser o Leão de Neméia nesse épico urbano em miniatura? Na primeira aventura de Heracles, dois envelopes iguais têm de
ser entregues em dois apartamentos
vizinhos. Penso nas duas serpentes
que o Hércules mitológico estrangulou no berço.
Mas seria errado imaginar que o
filme se baseia no jogo irônico entre
a grandeza grega e a mesquinhez da
vida paulistana. O rosto de Sidney
Santiago expressa com perfeição um
outro espectro de emoções, que não
vai do trágico para o cômico: dedica-se a uma série sutil de passagens entre o orgulho, a timidez, a reserva, o
charme e o rancor.
Heracles sofre uma quantidade
interminável de pequenas humilhações, seja dos clientes -que o ignoram ou desconfiam dele-, seja dos
colegas de trabalho. Dificuldades
mínimas -um papel que é preciso
carimbar, um elevador que não funciona- põem à prova sua capacidade de improviso.
Estamos num país, ou numa cidade, em que os estereótipos do calor
humano, da informalidade tropical,
deram lugar a um sistema implacável de regras, que todos seguem com
extremo mau humor.
Ao mesmo tempo, é impossível segui-las e a velha mística do "jeitinho" assume com isso características aflitivas. Do mesmo modo que
vemos os motoboys trançando loucamente as faixas de uma avenida,
importa vencer os entraves do cotidiano por meio de estratégias quase
suicidas, à fímbria da lei.
Para Heracles, acaba sendo mínima a diferença entre comportar-se
honestamente e ser pego em flagrante por tráfico de drogas. Tudo
depende, muitas vezes, da sorte, por
mais sincero que seja seu empenho
em andar na linha.
A "invisibilidade", assim, é tanto
uma experiência de humilhação
quanto um mecanismo de sobrevivência. A frase pode parecer metafórica; basta pensar, entretanto, no papel que um capacete desempenha
para um motoboy para se ter idéia
do quanto, neste filme, literal e poético, documental e imaginário coincidem com extrema elegância.
Um exemplo disso, para terminar.
Logo na abertura do filme, há uma
frase que lhe pode servir de epígrafe.
O lugar onde uma pessoa vive, diz o
protagonista enquanto a câmera
mostra um rua de periferia, determina o seu destino. É uma frase verdadeira, em qualquer situação. Mas,
dita por um motoboy, preocupado o
tempo todo em achar o endereço
dos clientes, torna-se especialmente
concreta. Com extrema habilidade,
o filme se equilibra entre o real e a
alegoria, sem se perder nunca no
meio do caminho.
coelhofsp@uol.com.br
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