|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
O semeador cansado
Mais tarde talvez receba um telefonema, não há mais o almoço com os pais, mas há os chatos
O HOMEM acordará e sentirá na
garganta seu gosto mais denso e mais triste. Não haverá
espanto em seus olhos fatigados,
nem ira em suas mãos crispadas.
Enfrentará com pasmo mais este
dia, mais este aniversário. "Felizmente, os parentes e os escassos
amigos não sabem." A rigor, já ninguém mais sabe, ele mesmo às vezes
se surpreende confuso -"não, não
faço anos, há muito que tenho uma
idade compacta, imensurável, indivisa: sou eterno na minha insignificância humana".
Vê no espelho o rosto de sempre
que recebe uma camada de espuma.
Pensa em mudar de gilete, "hoje, talvez, mereça uma gilete nova", mas
nem isso merece mais, vai mesmo
com a antiga, para quê ou por quê ficar melhor barbeado? Com barba ou
sem barba a escuridão dos olhos,
quase sem luz, a aspereza da boca, a
falta de sentido do sorriso serão os
mesmos e mesmo será o funeral de
suas esperanças e o suportar de suas
realidades. Quanto a barba em si, se
não deixar que cresça, ela crescerá
sozinha.
Em anos distantes, aquela era a
hora de abrir os presentes. Por pior
que estivesse a vida, havia sempre (e
pelo menos) um embrulho festivo
em cima da cama ou na mesa de seu
escritório. Agora não haverá o presente, de há muito que nem mesmo
ele é um presente -e sabe que o futuro não lhe faz falta e que o próprio
passado é indispensável agora.
"Bom, menos um aniversário, menos um despertar, menos uma amolação." Mais tarde talvez receba um
telefonema, não há mais o almoço
com os pais, mas os chatos inexoráveis e pontuais (nada mais pontual
do que um chato) não se esquecerão
de dar ou de mandar o abraço. De
qualquer forma, sente-se melhor assim, sem responsabilidade e sem a
glória que nunca teve, não terá de
agradecer a ninguém.
Lá fora, o dia não tomará conhecimento de seu drama particular. É
um dia comum, feito para uma humanidade comum, a luz comum batendo na praia comum -e o mar.
Por um momento sente-se preso a
algum lugar, à sua cidade, ao seu
mundo. O mar o retivera sempre,
muralha intransponível a impedir
avanços, cárcere movediço a impedir fugas. Sua agitação, então, coube
num estreito espaço de estreitas
ruas e estreitas pessoas. Ele mesmo
é um estreito. Lembra o monólogo
do Fausto, "um estreito espaço basta quando o abismo devorou todas
as esperanças e a gente chora continuamente os bens que não perdeu".
Mais tarde, se houver tempo, lerá algumas páginas de Goethe na tradução de Gerard de Nerval.
"Sou um homem que não vai para
nenhum lugar, para nenhuma experiência além do amor e da carne." E
lembra, como consolo, que pior que
não ter iniciado a viagem, é não ter
podido chegar, chegar matinalmente, como deve ser bom chegar.
Súbito, um pouco de ternura começa a amolecer dentro dele, flor
que amolece junto a um cadáver.
Mas não importa mais. Com carinho
ou sem ele, com loucura ou sem ela,
há que ir para qualquer lugar e, talvez, um lugar qualquer seja a sua
frente, o seu rumo. Chegando ou
não chegando dá na mesma, fica a
impressão de não ter saído do lugar.
Apesar do bastante que já viveu,
não adquiriu ainda aquela distância
desejada de fazer mais um ano sem
saber, sempre invejou aqueles velhos nos asilos que ignoram a própria idade, o dia em que nasceram,
se é que nasceram um dia. Antes de
morrer, um tio-avô que gostava de
decifrar charadas perguntou aos filhos reunidos em torno de seu leito
se era sábado ou domingo. Quando
soube que era uma quinta-feira, lançou a última charada de sua vida:
"Ainda bem!".
Não gosta de charadas, detesta
enigmas. No seu caso, há que continuar lúcido, se possível de fronte erguida, recebendo nos olhos nus e desarmados o mundo e os outros. Ele é
também um outro para os outros:
tudo sempre na mesma. Está puro e
só, mas enfrenta a luz que desce sobre seus ombros, vergando-o sob o
peso de mais um ano.
Então -e mais uma vez- o mar.
Olha as ondas e se distrai, vendo
aquele monstro que o encarcera deitar na praia suas grades de espuma,
espalhando ondas como sementes
na areia, com o gesto imenso e circular de um semeador cansado.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Festival: Cine Ceará divulga filmes selecionados Índice
|