São Paulo, sábado, 14 de março de 2009

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LIVROS

Crítica/"Meu Amor"

Beatriz Bracher não teme riscos em seus contos brutais

Experimentação e desconforto marcam a ótima reunião de textos da autora

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Meu Amor" é a primeira reunião de contos de Beatriz Bracher. Boa parte deles, com modificações, foi publicada em veículos variados, entre 2004 e 2008. Seis contos são inéditos. Há ainda um texto de encerramento, também inédito, que seria poesia banal, não fosse, antes, didascália -roteiro nevrálgico que se apresenta a posteriori para todo o livro. É ele que dá título ao conjunto, em forma de letra de canção em inglês ("My Love"), hesitante entre ser de ninar ou de adeus ("Before I whisper into your ear:// My Angel,/ what would you do with my love?")*.
No meio, torcido e estrangeiro, fica o amor. Mas qual amor pode subsistir nesse intervalo? Esse é o assunto dos contos. O livro pode ser visto como a construção de uma trama oculta entre duas linhas de força irresistíveis, superiores à vontade dos narradores e personagens. De um lado, uma força amorosa de guarda, um impulso de proteção do que se ama e se mostra insofrivelmente frágil. De outro, o reconhecimento assombrado de uma origem não circunstancial da violência, de uma contranatura perversa, de modo que todo afeto guarda uma maldade residual.
Os contos não são regulares. Alguns são até mal resolvidos, como "Ele Gostava de Maria", "Raza" e "João". Mas a falta de regularidade, no caso, acentua a disposição para o risco e a experimentação que há em todos. Os dois contos mais brutais, e também os melhores, têm como título a mesma cláusula irônica e mastigada ("Cloc, Clac").
Um deles repõe os eventos terríveis do noticiário da morte de Isabella Nardoni e do menino Victor Hugo; o outro, os da transmissão pela TV da surra que leva um velho da mulher que devia ser a sua enfermeira. Os relatos produzem perplexidade e desconforto, pois se descobre a existência recalcada, mas palpável, da corrente de excitação que perpassa os criminosos e os comentaristas indignados da notícia ("Um pai matou a filha, é o que sobra na sala. A excitação, o barulho infernal, as pequenas autoridades com gotículas no buço enevoam a tragédia de um pai ter jogado a sua filha de seis anos pela janela. Qualquer um deles poderia, eles sabem").

Comunhão patética
Quem protege amorosamente se identifica com quem agride com máxima violência, participa virtualmente da agressão. Sente-se o vibrar da comunhão patética, os afetos extremos encontrando sua afinação interdita. Quando ela soa por inteiro, tem-se de reconhecer o fundo trágico, o núcleo catastrófico persistente nas coisas. Já não há programa de razão ou política capaz de conter o infortúnio pessoal ou de civilizar a vida da cidade. Mas, ao se afastarem da política e mergulharem no desastre da existência, os contos tampouco adotam a ideia de sublimação mítica ou de poética da destruição.
Não por acaso, também não há no livro nenhuma "poesia do cotidiano", ao contrário do que diz o material de divulgação.
Mas há, sim, algo de muito comovente. Não é a presença desabrida do mundo cão, que mais anestesia que faz sentir, mas justamente a comunicabilidade paradoxal entre a violência alucinada que devia estar fora e o amor que se supõe mais íntimo e preservado. Misto de pudor e obscenidade, o amor declarado por Bracher também toma a forma de pena de morte.

*Antes de eu sussurrar no seu ouvido:// Meu Anjo,/ o que você faria com meu amor?"

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp.


MEU AMOR
Autora: Beatriz Bracher
Editora: 34
Quanto: R$ 27 (144 págs.)
Avaliação: ótimo



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