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LIVROS
Crítica/"Meu Amor"
Beatriz Bracher não teme riscos em seus contos brutais
Experimentação e desconforto marcam a ótima reunião de textos da autora
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Meu Amor" é a primeira reunião de
contos de Beatriz Bracher. Boa parte deles,
com modificações, foi publicada em veículos variados, entre
2004 e 2008. Seis contos são
inéditos. Há ainda um texto de
encerramento, também inédito, que seria poesia banal, não
fosse, antes, didascália -roteiro nevrálgico que se apresenta
a posteriori para todo o livro.
É ele que dá título ao conjunto, em forma de letra de canção
em inglês ("My Love"), hesitante entre ser de ninar ou de
adeus ("Before I whisper into
your ear:// My Angel,/ what
would you do with my love?")*.
No meio, torcido e estrangeiro,
fica o amor. Mas qual amor pode subsistir nesse intervalo?
Esse é o assunto dos contos.
O livro pode ser visto como a
construção de uma trama oculta entre duas linhas de força irresistíveis, superiores à vontade dos narradores e personagens. De um lado, uma força
amorosa de guarda, um impulso de proteção do que se ama e
se mostra insofrivelmente frágil. De outro, o reconhecimento
assombrado de uma origem
não circunstancial da violência,
de uma contranatura perversa,
de modo que todo afeto guarda
uma maldade residual.
Os contos não são regulares.
Alguns são até mal resolvidos,
como "Ele Gostava de Maria",
"Raza" e "João". Mas a falta de
regularidade, no caso, acentua
a disposição para o risco e a experimentação que há em todos.
Os dois contos mais brutais, e
também os melhores, têm como título a mesma cláusula irônica e mastigada ("Cloc, Clac").
Um deles repõe os eventos terríveis do noticiário da morte de
Isabella Nardoni e do menino
Victor Hugo; o outro, os da
transmissão pela TV da surra
que leva um velho da mulher
que devia ser a sua enfermeira.
Os relatos produzem perplexidade e desconforto, pois se
descobre a existência recalcada, mas palpável, da corrente
de excitação que perpassa os
criminosos e os comentaristas
indignados da notícia ("Um pai
matou a filha, é o que sobra na
sala. A excitação, o barulho infernal, as pequenas autoridades
com gotículas no buço enevoam a tragédia de um pai ter
jogado a sua filha de seis anos
pela janela. Qualquer um deles
poderia, eles sabem").
Comunhão patética
Quem protege amorosamente se identifica com quem agride com máxima violência, participa virtualmente da agressão. Sente-se o vibrar da comunhão patética, os afetos extremos encontrando sua afinação
interdita. Quando ela soa por
inteiro, tem-se de reconhecer o
fundo trágico, o núcleo catastrófico persistente nas coisas.
Já não há programa de razão
ou política capaz de conter o infortúnio pessoal ou de civilizar
a vida da cidade. Mas, ao se
afastarem da política e mergulharem no desastre da existência, os contos tampouco adotam a ideia de sublimação mítica ou de poética da destruição.
Não por acaso, também não há
no livro nenhuma "poesia do
cotidiano", ao contrário do que
diz o material de divulgação.
Mas há, sim, algo de muito
comovente. Não é a presença
desabrida do mundo cão, que
mais anestesia que faz sentir,
mas justamente a comunicabilidade paradoxal entre a violência alucinada que devia estar
fora e o amor que se supõe mais
íntimo e preservado. Misto de
pudor e obscenidade, o amor
declarado por Bracher também
toma a forma de pena de morte.
*Antes de eu sussurrar no seu ouvido:// Meu
Anjo,/ o que você faria com meu amor?"
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Unicamp.
MEU AMOR
Autora: Beatriz Bracher
Editora: 34
Quanto: R$ 27 (144 págs.)
Avaliação: ótimo
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