São Paulo, sábado, 14 de março de 1998

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Ratinho e a contradição kantiana

NELSON HOINEFF
especial para a Folha

A cada ponto do Ibope corresponde mais um adjetivo: mundo-cão, baixo, bizarro. O fato está nos picos de audiência, mas o grande corolário do caso Ratinho está menos ligado ao apresentador do que à dificuldade da mídia de entender um fato novo. Talvez fosse proveitoso cogitar que o verdadeiramente bizarro seja a fome de rotular o que apenas é diferente.
As etiquetas sobram onde o conhecimento está em falta. Aberrações existem em dezenas de programas de televisão que não saem do traço. Por que o público escolheria um? Ratinho traz casais em conflito, arma abertamente as situações extremas e sai de cena, deixando o ser humano desfilar o seu patético. Nesse caminho, subverte o que está à sua frente: marcações, horários, relações com o estúdio. Letterman fazia isso, nos seus melhores momentos de "outsider" ainda na NBC. Faustão teve um rápido estalo, nos velhos e bons momentos do "Perdidos na Noite". Como nas origens de Letterman e Faustão, mas bem ao seu estilo, o que Ratinho promove todos os dias é uma releitura do abjeto. O importante não é o que está acontecendo, mas como ele faz isso acontecer.
É verdade, todos estão lá: o homem grávido, o menino de duas cabeças, o operário que vive com a mulher e o travesti. Todos, e mais o menino que viu a Virgem, estavam também em Fellini. Mas é preciso vê-los pela filtragem de Nino Rota, ou então vamos comer mosca -e acabamos acreditando que Saraghina é uma "freak" cunhada para ganhar o povão.
"Talvez a comunicação de massa e a audiência de massa acabem provando ser anomalias históricas", dizia Russell Newmann. Mais anômalo ainda é com frequência a interpretação dessa audiência. Os idiotas da objetividade olham para esses números com a estupidez de quem tem todas as respostas prontas. "Ganha ponto porque é vulgar". Pronto. Está explicado o Ratinho.
Perniciosa é a pasteurização que essa ideologia sustenta. Ratinho faz um programa para a audiência massiva e deixa transparente sua forma de lidar com a anomalia. Chama Silvio Santos e Marluce no ar para dizer que está dando "um banho neles". Silvio, pelo menos, adoraria fazer a mesma coisa -e deve estar se perguntando por que não pensou nisso antes. A civilização dessa anomalia newmanniana requer uma relação anárquica com o caráter anárquico desses mecanismos de medição. Ratinho diverte-se com isso, da mesma forma como se diverte com a anarquia que instaura. Fisicamente abana as mãos e sai meio de lado, como se não tivesse nada a ver com o assunto. Veio para confundir, não para explicar.
Quem primeiro veio para confundir, não para explicar, levou anos tomando pau até ser redescoberto pelos tropicalistas. O público já tinha tirado há dez anos suas conclusões. O curioso é que medições de audiência servem, na maioria das vezes, para aferir o grau de identificação de um momento televisivo em relação a outros já consagrados. Legitimar a mesmice, por assim dizer. Quanto mais próximo o primeiro estiver do segundo, maior a sua pontuação. A televisão genérica, massiva, fia-se, em outras palavras, na reiteração do que já foi aceito. Um programa é tão melhor quanto mais se parecer com outro que já existe; quanto mais próximo estiver do ideário filosófico e estético do que já se convencionou ser "bom". Televisão boa, segundo esse ideário, é a que traz a segurança de já ter sido legitimada antes.
Ratinho transgride essa idéia. É politicamente incorreto, ainda que crie um personagem de invulgar ambiguidade: por um lado ele se diverte com o trágico; por outro, se solidariza com a tragédia. Pode se facilmente interpretar à luz de Kant a contradição que ele levanta, admitindo a presença de gostos distintos mas tentando chegar a todos os gostos.
A contradição, claro, não é do Ratinho, mas da TV genérica, último degrau de um processo de massificação negativo. Pela definição de seus objetivos, a televisão genérica é tão melhor quanto mais estupidamente parecida entre si. Vez por outra aparece alguém para torná-la diferente. O público grita que gostou. Mas o império da burrice vocifera pela hegemonia da mediocridade -até, anos depois, a história confirmar que o público estava certo.


Nelson Hoineff é jornalista, diretor do Documento Especial (Bandeirantes) e Primeiro Plano (Cultura), autor de "TV em Expansão" (ed. Record) e "A Nova Televisão - Desmassificação e o Impasse das Grandes Redes" (ed. Relume-Dumará).



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