São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2000


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"KAPO"

Obra tenta descrever o indescritível

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

"Para qualquer um que não estava lá... é impossível descrever." A frase, de um sobrevivente do gueto de Lodz, resume um dilema comum: quem viveu aquilo não precisa de descrição; quem não viveu não tem como imaginar.
A tentativa, apesar de tudo, de descrever o indescritível marca o documentário "Kapo", de Dan Setton e Tor Ben-Mayor, e define suas ambições e limites. "Kapo" será exibido hoje em São Paulo, no festival É Tudo Verdade.
"Kapo" vem do italiano "capo" (cabeça ou chefe). Era o funcionário mais baixo da hierarquia nazista: um judeu convidado ou compelido a chefiar os outros, nos guetos e nos campos de concentração.
Os kapos são lembrados com um misto de repulsa (pelas violências infligidas) e vergonha (pelo caráter colaboracionista). Todos justificam o que fizeram como opção de sobrevivência; e todos afirmam que as coisas teriam sido piores sem eles.
São figuras como o maestro Hanek Barenblatt, kapo de um gueto polonês, hoje exercendo a música na Alemanha, ou Magda Hellinger, do campo de extermínio de Auschwitz, agora morando na Austrália, ou Vera Alexander, sua assistente, que vive em Israel.
Imagens de arquivo deixam qualquer um sem palavras: os trens de carga abarrotados de gente, as rampas na chegada ao campo, as pilhas de objetos, as montanhas de cabelo, as multidões de pessoas sem roupa, o olhar de incompreensão de um homem ou mulher, com o uniforme listrado. O que era coletivo e impessoal ganha humanidade nessas entrevistas, 50 anos depois. A desumanização do judeu -sua transformação em "raça"- tem de ser resistida retrospectivamente, quando se dá voz e rosto a quem foi privado de tudo, incluindo a voz e o rosto. Uma diferença de expressão, aqui, tem força de argumento.
Autojustificativas à parte, a diferença humana entre os kapos e suas vítimas fica evidente desde logo. Uns "explicam", com maior ou menor frieza, e aparente boa consciência; os outros lembram, com um fogo que queima nas vírgulas e espaços da fala.
Que o filme não resista às emoções e empreste (entre outras coisas) uma trilha sonora hollywoodiana ao que não é ficção de Hollywood indica a dificuldade de narrar isso que não pode ser narrado. Entre imagens e palavras, há uma virtual proibição. É isso que a memória tem de quebrar, sob pena de se perder nas meras ilusões de um filme, ou na explicação que desculpa.
Indecidido no juízo humano, o documentário também não chega a se decidir entre a sabedoria convencional da narrativa e outra, mais difícil, nesse caso talvez imprescindível.
"Eu estava lá. Eu testemunhei", diz o sobrevivente do gueto de Lodz. Testemunhar a testemunha é o mínimo, e talvez o máximo, que se pode fazer agora, para garantir a sua humanidade. E a nossa. Que o filme nos obrigue, também, a testemunhar perpetradores, com alguma medida de compreensão, é uma virtude desconfortável, talvez a maior, num documentário confortável demais com sua compreensão e sua virtude.


Avaliação:    

Filme: Kapo
Direção: Dan Setton e Tor Ben-Mayor, Israel, 1999, 55 min., vídeo
Quando: hoje, às 19h
Onde: Cinesesc (r. Augusta, 2.075, Jardins, tel. 0/xx/11/3064-1668)
Quanto: entrada franca


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