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FABIO DE SOUZA ANDRADE
Gente que fala
Em mãos habilidosas, a arte da entrevista resiste ao tempo, como prova a reedição de "Gentíssima"
ENTRE UMA desejada intimidade, ainda que vicária, com um
desconhecido, próximo ou
distante, ídolo ou não, e uma potencial "máquina de fazer mal-entendidos" (João Cabral), a sedução da entrevista assume múltiplas formas,
todas difíceis de ignorar. Mesmo em
toscos "três por quatro" verbais, há
brechas para ironia defensiva, sinceridade desarmada ou cabotinismo
revelador. Vejam se não é o caso destes "Traços de Identidade", de Jorge
de Lima, na "Folha da Manhã", em
1952, e o clássico "Auto-Retrato de
Graciliano Ramos aos 56 Anos" por
iniciativa de João Condé, de 1948.
"Altura: 1 metro e 68 centímetros.
Peso: 59 quilos e meio. Colarinho:
37. Usa óculos. Grisalho, meio careca, meio surdo. Não precisa dizer
que sua vista é cansadíssima. É católico praticante. Seu santo: são Jorge,
padroeiro da Inglaterra e santo da
macumba. Veste sempre cinza. Adora o mar. Gosta muito de crianças.
Sente muitas saudades de seus vizinhos de província." Na economia do
inventário, as matrizes da poesia do
autor dos "Poemas Negros" insinuam-se, melífluas.
"Nasceu em Quebrangulo, Alagoas. Casado duas vezes, tem sete filhos. Prefere não andar. Não gosta
de vizinhos. É ateu, indiferente à
Academia. Odeia a burguesia. Adora
crianças. Gosta de palavrões escritos
e falados. Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo. Esteve
preso duas vezes. É-lhe indiferente
estar preso ou solto. Escreve à mão.
Espera morrer com 57 anos." Aqui, a
dureza quase ríspida, pouco concessiva, de Graciliano se humaniza no
humor cortante.
Ingênua ou não, em mãos habilidosas, a arte da entrevista resiste ao
tempo, como prova a reedição de
"Gentíssima", de Maria Ignez da
Costa Barbosa. São 28 depoimentos
publicados no "Jornal do Brasil", em
fins dos anos 60, que valem pelo tino
da entrevistadora em capturar um
Brasil cujo fio se rompeu.
A linguagem escorreita, a prontidão e pertinência da presença discreta, mas ativa da entrevistadora
fundem traços essenciais dos personagens às circunstâncias de um encontro: João Cabral na cobertura do
amigo Rubem Braga, provocado por
sua ironia; um Pixinguinha aniversariante que troca a homenagem
oficial pela companhia de Donga e
João da Baiana, no botequim; um
Agripino Grieco amargo como picles, conservado entre livros; Salvador Dalí em exposição pública, cioso
dos olhares, num bar nova-iorquino.
As quatro seções, "Literária" (nomes como Guimarães Rosa, Erico
Verissimo), "Colorida" (Manabu
Mabe, Di Cavalcanti, Henry Moore),
"Sonante" (Elizete Cardoso, Monsueto) e "Tropical" (em que um ex-presidente se junta a anônimos, cariocas), abrem janelas para mundos
singulares mas também para uma
época: Nara Leão, Lígia Clark e Marina Colasanti falam como contemporâneas da revolução sexual, Juscelino Kubitschek, na sombra política, Edu Lobo, Vinicius de Moraes e
Gilberto Gil, na crista da onda. As
vistas valem a leitura.
GENTÍSSIMA: 28 ENTREVISTAS
Autor: Maria Ignez C. da Costa Barbosa
Editora: Ateliê Editorial
Quanto: R$ 40 (195 págs.)
Avaliação: bom
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