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NELSON ASCHER
O sr. Cogito
Marcado por versos
atuais, poeta polonês do século 20 precisa ser traduzido no país
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A POESIA mundial da primeira
metade do século 20 está decentemente mapeada. Dois
fatores são responsáveis por isso.
Em primeiro lugar, os poetas daquelas gerações se agruparam, de acordo com orientações estilísticas, afinidades políticas etc., em movimentos e escolas voluntariamente formadas, buscando defender suas escolhas mediante declarações e manifestos. Em segundo, esse meio século, além de produzir poesia memorável, gerou teoria e crítica literária sem rivais. E não foram poucos
os teóricos e críticos que se dedicaram a entender o caráter do que se
criava em seu próprio tempo.
Graças à colaboração entre criação e reflexão, quando, após a Segunda Guerra, essa era mais ou menos terminou, os leitores tinham
diante de si não apenas o cânone da
modernidade devidamente exposto
e discutido, como uma revisão sistemática dos anteriores, uma revisão
que, ao reordená-los de acordo com
prioridades contemporâneas, pôs
ou repôs em circulação tanto o conjunto da literatura barroca desprezada por 200 anos, como autores
que, antes ignorados, passaram a ser
considerados indispensáveis.
Ainda há muito o que fazer. Como
se poderia esperar, a poesia mais
adequadamente cartografada é a
que foi escrita nas principais línguas
ocidentais. O que se produziu nas
demais precisa ser traduzido para
estas antes de entrar de fato em circulação no resto do mundo. E, por
causa dessa ausência, o efeito sobre
a poesia universal de autores cuja
grandeza é conhecida por seus conterrâneos está longe de se fazer sentir. O modernismo brasileiro é um
caso em questão.
São dois, e apenas dois, os poetas
que, atuando na primeira metade do
século passado, conseguiram ultrapassar barreiras semelhantes: Fernando Pessoa e o neogrego Constantinos Caváfis (há várias grafias
para seu nome). Mais do que se tornarem conhecidos na Europa Ocidental e nos EUA, eles são hoje figuras indispensáveis. Pessoa tem uma
obra imensa (e que cresce a cada incursão que se faz a seu baú), mas Caváfis, que escreveu uma centena e
meia de poemas, pode ser lido nas
diversas línguas européias em meia
dúzia de traduções diferentes.
A recepção de ambos foi demorada e cada um conquistou seu renome anos depois de morrer. Ambos
foram igualmente bem servidos por
críticos estrangeiros que, apaixonando-se por sua produção, fizeram
de tudo para divulgá-la. Nada disso
teria adiantado, porém, se o português e o grego não tivessem algo de
diferente, algo que não podia ser
achado na poesia de outros países.
Enraizados cada qual na história e,
mais profundamente, na mitologia
de suas nações, os dois contribuíram
para elaborar em suas obras uma
maneira distinta de entender e reapresentar o passado, uma maneira
na qual o factual compete com o
imaginário para dar ao presente,
mesmo o mais decadente, uma espécie de sentido que, embora irônico, melancólico mesmo, nem assim
é menos glorioso.
Quem ocuparia um lugar semelhante no quadro bem menos ordenado da poesia recente? O grande
candidato é um polonês: Zbigniew
Herbert (1924-98). Muito do que escreveu pode ser lido em línguas estrangeiras e, ano passado, sua poesia
completa foi publicada em inglês. O
que contará, no caso de seu sucesso,
porém, é sobretudo o tipo de poesia
que compôs.
Filho de um país situado na pior
vizinhança possível, entre a Rússia e
a Alemanha, Herbert viveu no palco
de batalhas sangrentas e conviveu
com um amplo leque de tiranias. A
história, para ele, era inescapável. Se
ser polonês a tornava mais terrível,
nem por isso sua perspectiva se reduz à de seu país, pois este foi apenas
o lugar no qual ele assistiu ao suicídio da civilização européia. Condizentemente, é da memória desta,
dos mitos gregos à queda do Muro
de Berlim, que seus versos se ocupam. Como Caváfis, ele é capaz de
estar em casa em qualquer época como se fosse a sua. Como Pessoa, ele
criou uma espécie de heterônimo
(ou talvez alter ego), o sr. Cogito.
Seus poemas estão igualmente na
contracorrente. Não há vanguardismo em seu estilo, que é ilusoriamente simples e direto. E a política, onipresente em sua obra, não se confunde com o panfletarismo fácil. Seu
programa consiste na defesa do que
resta da civilização contra a desagregação interna e a barbárie externa.
Muitos ignoram que habitamos um
mundo frágil e ameaçado (embora
não pelo aquecimento global). Ele o
sabia e, a cada releitura, seus versos
se revelam mais assustadores e
atuais. Não conheço outro poeta que
precise ser mais urgentemente traduzido no Brasil.
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