São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2008

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NELSON ASCHER

O sr. Cogito


Marcado por versos atuais, poeta polonês do século 20 precisa ser traduzido no país

A POESIA mundial da primeira metade do século 20 está decentemente mapeada. Dois fatores são responsáveis por isso. Em primeiro lugar, os poetas daquelas gerações se agruparam, de acordo com orientações estilísticas, afinidades políticas etc., em movimentos e escolas voluntariamente formadas, buscando defender suas escolhas mediante declarações e manifestos. Em segundo, esse meio século, além de produzir poesia memorável, gerou teoria e crítica literária sem rivais. E não foram poucos os teóricos e críticos que se dedicaram a entender o caráter do que se criava em seu próprio tempo.
Graças à colaboração entre criação e reflexão, quando, após a Segunda Guerra, essa era mais ou menos terminou, os leitores tinham diante de si não apenas o cânone da modernidade devidamente exposto e discutido, como uma revisão sistemática dos anteriores, uma revisão que, ao reordená-los de acordo com prioridades contemporâneas, pôs ou repôs em circulação tanto o conjunto da literatura barroca desprezada por 200 anos, como autores que, antes ignorados, passaram a ser considerados indispensáveis.
Ainda há muito o que fazer. Como se poderia esperar, a poesia mais adequadamente cartografada é a que foi escrita nas principais línguas ocidentais. O que se produziu nas demais precisa ser traduzido para estas antes de entrar de fato em circulação no resto do mundo. E, por causa dessa ausência, o efeito sobre a poesia universal de autores cuja grandeza é conhecida por seus conterrâneos está longe de se fazer sentir. O modernismo brasileiro é um caso em questão.
São dois, e apenas dois, os poetas que, atuando na primeira metade do século passado, conseguiram ultrapassar barreiras semelhantes: Fernando Pessoa e o neogrego Constantinos Caváfis (há várias grafias para seu nome). Mais do que se tornarem conhecidos na Europa Ocidental e nos EUA, eles são hoje figuras indispensáveis. Pessoa tem uma obra imensa (e que cresce a cada incursão que se faz a seu baú), mas Caváfis, que escreveu uma centena e meia de poemas, pode ser lido nas diversas línguas européias em meia dúzia de traduções diferentes.
A recepção de ambos foi demorada e cada um conquistou seu renome anos depois de morrer. Ambos foram igualmente bem servidos por críticos estrangeiros que, apaixonando-se por sua produção, fizeram de tudo para divulgá-la. Nada disso teria adiantado, porém, se o português e o grego não tivessem algo de diferente, algo que não podia ser achado na poesia de outros países. Enraizados cada qual na história e, mais profundamente, na mitologia de suas nações, os dois contribuíram para elaborar em suas obras uma maneira distinta de entender e reapresentar o passado, uma maneira na qual o factual compete com o imaginário para dar ao presente, mesmo o mais decadente, uma espécie de sentido que, embora irônico, melancólico mesmo, nem assim é menos glorioso.
Quem ocuparia um lugar semelhante no quadro bem menos ordenado da poesia recente? O grande candidato é um polonês: Zbigniew Herbert (1924-98). Muito do que escreveu pode ser lido em línguas estrangeiras e, ano passado, sua poesia completa foi publicada em inglês. O que contará, no caso de seu sucesso, porém, é sobretudo o tipo de poesia que compôs.
Filho de um país situado na pior vizinhança possível, entre a Rússia e a Alemanha, Herbert viveu no palco de batalhas sangrentas e conviveu com um amplo leque de tiranias. A história, para ele, era inescapável. Se ser polonês a tornava mais terrível, nem por isso sua perspectiva se reduz à de seu país, pois este foi apenas o lugar no qual ele assistiu ao suicídio da civilização européia. Condizentemente, é da memória desta, dos mitos gregos à queda do Muro de Berlim, que seus versos se ocupam. Como Caváfis, ele é capaz de estar em casa em qualquer época como se fosse a sua. Como Pessoa, ele criou uma espécie de heterônimo (ou talvez alter ego), o sr. Cogito.
Seus poemas estão igualmente na contracorrente. Não há vanguardismo em seu estilo, que é ilusoriamente simples e direto. E a política, onipresente em sua obra, não se confunde com o panfletarismo fácil. Seu programa consiste na defesa do que resta da civilização contra a desagregação interna e a barbárie externa. Muitos ignoram que habitamos um mundo frágil e ameaçado (embora não pelo aquecimento global). Ele o sabia e, a cada releitura, seus versos se revelam mais assustadores e atuais. Não conheço outro poeta que precise ser mais urgentemente traduzido no Brasil.


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