São Paulo, terça-feira, 14 de maio de 2002

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LITERATURA

Movimento simbolista cearense Padaria Espiritual, de 1892, tem finalmente sua história "maldita" contada

Livro resgata confraria pré-modernista

XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

PAULO MOTA
COORDENADOR-ASSISTENTE DA AGÊNCIA FOLHA

Sequestrada pela história oficialesca da literatura, a Padaria Espiritual, sociedade de letras cearense com pendor maldito e feição pré-modernista, completa 110 anos neste mês, ano em que a Semana de 1922 completa 80.
Na corcunda da efeméride, o Museu do Ceará publica "Padaria Espiritual - Biscoito Fino e Travoso", do historiador Gleudson Passos Cardoso, 27, que narra a aventura de Policarpo Estouro, Cariri Braúna, Lucas Bizarro, Venceslau Tupiniquim, entre outros "padeiros", como eram tratados os membros da confraria.
A finalidade do movimento foi registrada no artigo primeiro do seu "Programa de Instalação", no dia 30 de maio de 1892, em Fortaleza: "Fornecer pão de espírito aos sócios, em particular, e aos povos, em geral". Na contramão da luxúria da belle époque que reinava nos céus de Olavo Bilac, alguns "padeiros" lançavam panfletos contra o poder estabelecido pela novíssima República.
Como nos versos de Sátiro Alegrete (nome de guerra de Sabino Batista), recitados no extinto Café Java, nos arredores da praça do Ferreira, ponto de encontro da sociedade literária: "Devemos mais uma vez/ Fazer um protesto forte:/ -Votar a todo burguês/ O nosso ódio de morte".
A sátira aos valores da ordem capitalista-civilizatória (moda que chegava com embalagem novinha em folha do progresso soprado da Europa para estas bandas) era mote permanente da rebeldia dos escritores cearenses, grupo de jovens saltados da miséria do semi-árido e da classe média baixa de Fortaleza.
"Eram funcionários da alfândega, caixeiros, escritores menores, sem filiação com as facções político-oligárquicas e buscavam ascensão pública e social", conta o historiador Cardoso no seu livro. "Os setores emergentes da capital foram sem dúvida o grupo mais perseguido pela pilhéria e o sarcasmo da Padaria." O veículo para essa crônica de costumes era "O Pão", jornal libertário que não dava sossego aos poderosos, aos conservadores e ao clero. Esculhambar para corrigir, eis a moral.
Na pilhéria, com sonetos e quadrinhas satíricos em vez do poema-piada de Oswald de Andrade, os "padeiros" do Ceará beiravam o gosto do biscoito fino modernista que chegaria, oficialmente, 30 anos depois em São Paulo, na Semana de 22.
Em um dos tópicos do seu código literário, os amassadores do pão para o espírito também lembravam o "tupy or not tupy" dos modernistas. A recomendação era trocar o afrancesamento em voga geral na província pelo vernáculo tupiniquim. Mas não havia uma filiação literária definida no grupo, que tanto possuía a verve modernista quanto as sombras do simbolismo. "Durante as fornadas (sessões), é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando se falar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar", pregava o artigo 20 da conduta dos "padeiros".
Embora não houvesse a pretensão à grande literatura, aí outro parentesco com a farra de 22, saiu dessa geração registros consistentes, como a escritura de Adolfo Caminha, autor de "A Normalista", pioneiro ao criar um personagem declaradamente homossexual na prosa brasileira.


PADARIA ESPIRITUAL - BISCOITO FINO E TRAVOSO. Autor: Gleudson Passos Cardoso. Editora: Edições Museu do Ceará (tel. 0/xx/85/251-1502). Quanto: R$ 5 (98 págs.).



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