São Paulo, terça-feira, 14 de maio de 2002

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ARTIGO

Letras sob o sol e o areal

GILMAR DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os movimentos literários fizeram parte da formação de Fortaleza, no século 19. Primeiro foram os Outeiros, depois a Academia Francesa, até que foi lançada a Padaria Espiritual, no Café Java, na praça do Ferreira, a principal da cidade, a 30 de maio de 1892.
A inovação vinha já a partir do nome, com um jeito de sociedade secreta, irreverente e antecipadora. A molecagem cearense ganhava a chancela de uma instituição literária. Postulados modernistas eram lançados 30 anos antes da Semana de Arte Moderna de 1922.
O "Programa de Instalação" vale pelo movimento. Seus 47 artigos já propunham uma fala brasileira, livre dos francesismos, sem alusões a cotovias e olmos. A vaia era instituída como instrumento de controle e era proibido recitar enquanto se tocava piano.
Os padeiros amassavam o biscoito fino que a cidade rejeitava. Difícil compreender o que queria aquele grupo de jovens amargurados pela falta de leitores, incapazes de uma sintonia com o marasmo provinciano.
Provocativos, tinham como inimigos o clero, a polícia e os alfaiates e declaravam um "ódio ao burguês" ou ao espírito mesquinho de uma cidade que não poupava ninguém e merecia os padeiros porque tão iconoclasta quanto eles. Eles são frutos do algodão que colocou o Ceará no mapa, acumulando riquezas por causa da guerra norte-americana que nos abriu o mercado europeu.
A verve cearense é uma construção ideológica, baseada no caráter de um povo. Vem de tempos imemoriais e encontrou na Padaria sua mais perfeita tradução. Em tempo de academias vetustas e de pretensa seriedade, a Padaria desafinava o coro.
O jornal "O Pão" durou seis anos. Se eles denunciaram os anúncios de bacalhau, terminaram por incorporá-los em suas páginas. A leitura é instigante, mas fica a sensação de que o "Programa de Instalação" era mais interessante que o jornal ou os livros que lançaram, como se fosse o bastante para sacudir a morrinha de uma Fortaleza preguiçosa por conta de tanto sol sob o areal.
Paradoxalmente, a Padaria se instalou quando subiu ao poder a oligarquia Acioli, que dominou a cena política cearense por longos 20 anos. Profeticamente, ela antecipava o movimento das camadas médias que, em 1910, derrubaria o Babaquara oligarca, sob ventos que outra vez antecipavam o fim da República Velha, da política e das letras.
Tudo acontecia na cidade e sob sua égide, a da urbanização e de uma pequena burguesia, de caixeiros e profissionais liberais, que, a partir de um longínquo Ceará, fazia ruído na literatura brasileira, de cuja história oficial foram "sequestrados". Ou são vistos apenas como uma expressão bizarra, pós-romântica ou simbolista.
Enquanto atuantes, eles acenderam a fornalha na velha rua Formosa e viraram de ponta-cabeça o ideal estético vigente, comendo o pão que o diabo amassou da indiferença e do esquecimento. E assim se passaram 110 anos.


Gilmar de Carvalho é professor da Universidade Federal do CE e doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP



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