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ARTIGO
Letras sob o sol e o areal
GILMAR DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os movimentos literários
fizeram parte da formação
de Fortaleza, no século 19. Primeiro foram os Outeiros, depois a
Academia Francesa, até que foi
lançada a Padaria Espiritual, no
Café Java, na praça do Ferreira, a
principal da cidade, a 30 de maio
de 1892.
A inovação vinha já a partir do
nome, com um jeito de sociedade
secreta, irreverente e antecipadora. A molecagem cearense ganhava a chancela de uma instituição
literária. Postulados modernistas
eram lançados 30 anos antes da
Semana de Arte Moderna de 1922.
O "Programa de Instalação" vale pelo movimento. Seus 47 artigos já propunham uma fala brasileira, livre dos francesismos, sem
alusões a cotovias e olmos. A vaia
era instituída como instrumento
de controle e era proibido recitar
enquanto se tocava piano.
Os padeiros amassavam o biscoito fino que a cidade rejeitava.
Difícil compreender o que queria
aquele grupo de jovens amargurados pela falta de leitores, incapazes de uma sintonia com o marasmo provinciano.
Provocativos, tinham como inimigos o clero, a polícia e os alfaiates e declaravam um "ódio ao
burguês" ou ao espírito mesquinho de uma cidade que não poupava ninguém e merecia os padeiros porque tão iconoclasta quanto
eles. Eles são frutos do algodão
que colocou o Ceará no mapa,
acumulando riquezas por causa
da guerra norte-americana que
nos abriu o mercado europeu.
A verve cearense é uma construção ideológica, baseada no caráter
de um povo. Vem de tempos imemoriais e encontrou na Padaria
sua mais perfeita tradução. Em
tempo de academias vetustas e de
pretensa seriedade, a Padaria desafinava o coro.
O jornal "O Pão" durou seis
anos. Se eles denunciaram os
anúncios de bacalhau, terminaram por incorporá-los em suas
páginas. A leitura é instigante,
mas fica a sensação de que o "Programa de Instalação" era mais interessante que o jornal ou os livros que lançaram, como se fosse
o bastante para sacudir a morrinha de uma Fortaleza preguiçosa
por conta de tanto sol sob o areal.
Paradoxalmente, a Padaria se
instalou quando subiu ao poder a
oligarquia Acioli, que dominou a
cena política cearense por longos
20 anos. Profeticamente, ela antecipava o movimento das camadas
médias que, em 1910, derrubaria o
Babaquara oligarca, sob ventos
que outra vez antecipavam o fim
da República Velha, da política e
das letras.
Tudo acontecia na cidade e sob
sua égide, a da urbanização e de
uma pequena burguesia, de caixeiros e profissionais liberais, que,
a partir de um longínquo Ceará,
fazia ruído na literatura brasileira,
de cuja história oficial foram "sequestrados". Ou são vistos apenas
como uma expressão bizarra,
pós-romântica ou simbolista.
Enquanto atuantes, eles acenderam a fornalha na velha rua Formosa e viraram de ponta-cabeça
o ideal estético vigente, comendo
o pão que o diabo amassou da indiferença e do esquecimento. E
assim se passaram 110 anos.
Gilmar de Carvalho é professor da Universidade Federal do CE e doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP
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