São Paulo, terça-feira, 14 de maio de 2002

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Romeu e Julieta em obras


Com recursos audiovisuais substituindo os cenários, montagem de Vassiliev estréia dia 23 temporada no Rio


ANA FRANCISCA PONZIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Entre os mitos do balé russo, Vladimir Vassiliev se equipara a Rudolf Nureyev e Mikhail Baryshnikov. Contemporâneo de Nureyev (1938-93), Vassiliev contrariou a tendência dos bailarinos de sua época que se exilaram no Ocidente para permanecer na Rússia. Em Moscou, onde nasceu, ele associou seu nome à história do Ballet do Teatro Bolshoi, onde ingressou ainda como estudante, para tornar-se, a partir da década de 60, uma de suas maiores estrelas e, finalmente, ocupar o cargo de diretor artístico entre 1995 e 2000.
Aos 62 anos, Vassiliev hoje é um profissional free-lance que trabalha em vários países. No momento, ele está no Rio de Janeiro montando sua versão do balé "Romeu e Julieta" para o Ballet do Teatro Municipal carioca. A estréia, no dia 23, contará com a participação de outra celebridade: o violoncelista e maestro Mstislav Rostropovich, que regerá a Orquestra Sinfônica do Municipal do Rio.
"Já vi mais de dez versões de "Romeu e Julieta". A minha se diferencia das demais porque a ação ocorre em três planos. Ao colocar a orquestra no centro do palco pensei em unir visão e audição, fazendo com que a narrativa partisse do regente. Rostropovich fica permanentemente em cena e é ele quem começa e termina o espetáculo. Há palcos complementares acima e abaixo da orquestra e por vezes os bailarinos atuam entre os músicos", explica Vassiliev.
A primeira vez que Vassiliev encenou seu "Romeu e Julieta" foi em 1990, no Teatro Stanislavsky de Moscou. "O projeto foi desenvolvido com Rostropovich, que sonhava em montá-lo na Itália, no palco da Arena de Verona." Com recursos audiovisuais substituindo os cenários, o balé de Vassiliev inspirado na tragédia de Shakespeare transcorre em três atos e, segundo o coreógrafo, utiliza por inteiro a partitura de Prokofiev. "Da primeira à última nota, preservamos tudo o que o compositor escreveu."
Aberto para a criação contemporânea, mas fiel à técnica clássica do balé, Vassiliev não concebe dança dissociada de música. "O corpo do bailarino é como uma orquestra que usa a integralidade de seus instrumentos. Dependendo da harmonia, ele faz o público chorar ou ficar indiferente." Num dos raros momentos em que se dispõe a contar sua história, Vassiliev falou à Folha sobre sua carreira e as disputas de poder no Teatro Bolshoi. Por dizer o que pensa e por tentar renovar o repertório do Ballet Bolshoi, ele frequentemente enfrentou oposições. Leia a seguir trechos de sua entrevista.

Folha - Qual a importância do balé "Romeu e Julieta" no repertório clássico?
Vladimir Vassiliev -
Musicalmente, conta com a mais genial obra de Prokofiev para balé. A construção dramática de "Romeu e Julieta" também é uma das melhores da história, talvez perdendo somente para "Giselle". Pessoalmente, considero o tema importante porque fala sobre o amor puro. Em meio às coisas negativas do mundo em que vivemos, aumenta nas pessoas a vontade de ver algo relacionado a sentimentos puros. É como uma necessidade de ar fresco.

Folha - O senhor está satisfeito com o elenco brasileiro?
Vassiliev -
O elenco em geral trabalha com muito interesse, mas o problema principal é a falta de tempo. Para montar esse imenso espetáculo estamos tendo apenas um mês, do qual ainda temos que retirar feriados e reuniões. Na Europa trabalha-se diferente, mas temos que levar em conta que no Rio a vida é sempre uma festa e eu estou até entrando no ritmo. Já acredito que no final dará tudo certo (risos).

Folha - Voltando ao início de sua carreira, havia resistência contra homens que decidiam se profissionalizar em dança?
Vassiliev -
Você tem de levar em conta que quando eu comecei vivia-se o pós-guerra. O país estava destruído e não havia recursos para popularizar a dança clássica. Uma coisa era dançar o folclore russo nos pátios dos prédios, como eu fazia na infância, outra era encarnar um príncipe do balé clássico.

Folha - Essa situação evoluiu rápido?
Vassiliev -
O que aconteceu é que apareceram mais homens nos balés e eles começaram a interpretar papéis mais importantes do que os das bailarinas. Isso influenciou o público e daí houve um processo natural com a difusão do balé pela televisão, pelos filmes.

Folha - Quando começou sua projeção internacional?
Vassiliev -
Em 1959, um ano após meu ingresso no Ballet Bolshoi, fizemos uma turnê pelos Estados Unidos e os jornais americanos se referiram a mim como uma nova estrela do balé russo. Naquela época, havia cerca de 30 grandes companhias na Rússia, mas o Kirov e o Bolshoi eram praticamente desconhecidos fora do país. Havia uma grande diferença entre a dança masculina russa e a dança masculina ocidental. Acho que ao "invadir" o Ocidente, o balé russo também contribuiu para o desenvolvimento da dança masculina.

Folha - Por que você decidiu permanecer na Rússia?
Vassiliev -
Mudar para o Ocidente nunca me passou pela cabeça porque eu dançava na capital, que era Moscou. As turnês internacionais dos grupos russos começaram a partir de Moscou. Ao contrário de bailarinos como Nureyev e Baryshnikov, que trabalhavam em Leningrado (hoje São Petersburgo), os moscovitas não tinham o sentimento de viver na província. Por outro lado, nos primeiros 15 anos no Bolshoi, eu participava constantemente de novos espetáculos. Qual é o artista que foge da oportunidade de sempre estrelar novas produções? Além de tudo, havia os amigos. Por mais que você goste das paisagens que te cercam, o que te segura é a memória da infância e da vida.

Folha - Por que mais tarde o senhor entrou em conflito com Yuri Grigorovich, que dirigiu o Bolshoi durante três décadas?
Vassiliev -
A gestão de Grigorovich foi fantástica nos primeiros dez anos, ou seja, até cerca de 1975. Como único coreógrafo, ele começou a se repetir. Não trazia outros criadores para trabalhar com a companhia e reagiu mal às críticas. Foi quando rompemos.

Folha - A abertura que o senhor imprimiu ao repertório do Bolshoi, durante sua gestão como diretor artístico, foi interrompida?
Vassiliev -
O que fiz cria dificuldades para que esse processo seja paralisado. A direção atual continua convidando coreógrafos para trabalhar com o elenco e eu espero que isso continue. Mas o problema é que estão trabalhando um pouco como no Ocidente. Ou seja, realiza-se algumas apresentações de um novo espetáculo, mas ele não fica no repertório. Grigorovich também está voltando a coreografar para o Bolshoi. Porém, em vez de fazer uma nova criação, ele remontará algo de 25 anos atrás e isso é muito ruim.


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