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São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2003

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"Gritaria esconde medo do fim da cultura do favor"

Leia a seguir a íntegra do texto "A Arte na Cultura do Favor", do movimento Arte contra a Barbárie, da Cooperativa Paulista de Teatro e de "O Sarrafo":
 
A recente gritaria contra o "dirigismo cultural", feita por um pequeno grupo de cineastas cariocas, esconde o medo pânico de que a cultura do favor seja rompida nos tratos da indústria cultural brasileira.
Esses defensores da liberdade de expressão -como o sr. Cacá Diegues e o sr. Luiz Carlos Barreto- nunca se opuseram ao dirigismo do marketing cultural das empresas, mas facilmente se rebelam contra qualquer possibilidade de discutir o sentido de uma produção artística que repense seu significado social.
A demonização da "contrapartida social" foi uma estratégia de escândalo. Por meio dela, os cineastas alardearam que o intervencionismo imperava na nova política de patrocínio das estatais.
Compararam a visão de cultura governamental ao modelo da Albânia antes da queda do Muro. Em outra fala patética, disseram que o nosso cinema se veria tematicamente obrigado a elogiar as vítimas da fome e, no que se refere à circulação, teria que exibir filmes para todas as classes da população. "Exibir filmes para todos, ótimo, mas não sei fazer isso!", disse o mais sincero deles, sr. Zelito Viana, em sua fobia de que a arte deixe de ser um privilégio de classe.
Os libertadores das verbas do cinema nacional afirmam que "a contrapartida social da obra de arte é a obra de arte", porém não se propõem a debater a qualidade dessas obras de arte (afinal, não é só por existir que uma obra realiza sua função estética). Ou será que temem a realização de concorrências públicas, sujeitas a critérios transparentes e comissões democráticas?
Todo artista sabe que as funções sociais ou políticas da obra de arte estão condicionadas por sua função estética e, nesse sentido, é indiscutível que a contrapartida social está na própria existência da obra de arte. Mas a existência da arte se vincula ao grau de ruptura crítica das obras em relação aos padrões hegemônicos, tanto do ponto de vista artístico quanto de diálogo com o público. E o supremo dogmatismo cultural se chama forma-mercadoria. A recusa em pensar modos de contrapartida social corresponde à recusa em modificar as práticas dominantes de produção e de circulação, confinadas nos limites excludentes e medíocres do mercado de entretenimento.
Para deixar evidente que o cinema brasileiro não se resume ao grupo dos lobistas cariocas, surgiu um manifesto contra o recuo do governo assinado por 53 artistas de cinema de todo o país. A voz lúcida do grande cineasta Nelson Pereira dos Santos, que se disse "repugnado pela afirmação de que basta fazer um filme para que haja contrapartida social, por estar fazendo arte", só faz separar o joio do trigo na modernização do cinema brasileiro.
É triste verificar que muitos dos que hoje defendem o conservadorismo de uma cinematografia dependente dos favores do Estado -em troca de um nacionalismo de exportação- sejam ex-integrantes de movimentos progressistas e independentes como o dos CPCs (Centros Populares de Cultura) e do cinema novo. Resta a alegria de perceber que a reflexão estética continua a acontecer criticamente no novo cinema brasileiro, graças à influência de tantos que não mercantilizaram seus padrões formais.
No todo, o debate só obteve tamanha repercussão devido à atuação dos noticiários da Rede Globo de televisão e da chocante subserviência do governo aos seus detratores. A discussão é de interesse público e não pode ficar restrita aos artistas e produtores que mantêm vínculos empregatícios ou tratos fraternos com a Rede Globo. Essa intimidade com a principal empresa televisiva brasileira tem direcionado muito do comportamento do Estado na área cultural. No mínimo, essa emissora de televisão de concessão pública deveria dar voz aos demais pontos de vista surgidos no debate.
O embate contra os desmandos do capital ainda é uma esperança de todos que apóiam o atual governo federal. Para que a ação do Ministério da Cultura seja mais do que a expressão simbólica do conchavo entre a indústria cultural e a brasilidade popular de exportação, o governo pode e deve recorrer aos quadros de vanguarda do Partido dos Trabalhadores, ouvir outros setores organizados da sociedade civil que têm se mobilizado contra a mercantilização pura e simples da arte e da cultura.
Na cidade de São Paulo, uma contribuição teórico-prática das mais avançadas para uma política cultural pública foi feita com base no critério da contrapartida social. Poder público e sociedade dialogam através de experiências modelares, o que ocorre em alguns dos projetos desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Cultura e na implementação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, iniciativa de um representativo conjunto de grupos teatrais da capital paulista encampada pela Câmara Municipal. O alcance do programa e seus notáveis resultados artísticos provam que a formulação de critérios públicos de apoio à arte não implica policiamento ideológico, e sim chamamento à responsabilidade social.
O recuo do governo face à pressão dos lobistas da Cultura não representa só outro abandono do projeto socializante do Partido dos Trabalhadores, mas indica um retrocesso da própria democratização burguesa em relação ao senhorialismo tropical.


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