São Paulo, sábado, 14 de maio de 2005

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CONTOS

Jornalista combina registros que vão do chulo ao lírico em 12 textos

Em coletânea, Mario Sabino identifica narcisismo de estilo

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O novo livro do jornalista Mario Sabino se intitula "O Antinarciso", mas nenhum dos contos que compõem o volume tem esse nome. Ao dar um título que se aplica ao conjunto de seus textos, portanto, o autor nos induz a encontrar indícios de "antinarcisismo" em cada um deles.
O termo narcisismo tem acepções que derivam ora de representações mitológicas e artísticas (Narciso é a personagem que se apaixona por sua imagem refletida na água), ora da psicanálise (em que designa o investimento afetivo no próprio ego). Sabino identifica outra variante possível: o narcisismo do estilo.
Afinal, o livro pode ser lido como uma desconstrução do narcisismo que atinge a própria forma literária. Ao lançar mão da paródia e da combinação de registros que vão do chulo ao lírico, do erudito ao coloquial, ele mostra que a representação ficcional do narcisismo tem como contrapartida a economia estilística e a auto-ironia; caso contrário, se confiasse nos recursos da retórica, seria um esteta -que nada mais é do que um Narciso travestido de artista.
O volume tem três partes, cada uma com quatro contos. A primeira se intitula "Forma" e reúne narrativas que se apropriam de outros autores, adaptando-os a uma percepção contemporânea da egolatria e do solipsismo das relações sociais.
Em "Da Amizade Masculina", por exemplo, o retrato de dois amigos identificados pela beleza física e pelo brilho intelectual remete ao ensaio em que Montaigne celebrou sua amizade com La Boétie. Escrito num tom que faz lembrar as epifanias estéticas de Thomas Mann, o conto faz com que a simbiose das duas personagens desperte mesquinharias envolvendo suas namoradas; ao final, a referência a Sócrates e Alcebíades mostra a degradação da amizade filosófica antiga na mitomania e no ressentimento sexual modernos.
O mesmo procedimento paródico aparece em "Um Chapéu ao Espelho" (que reescreve o "Capítulo dos Chapéus", de Machado de Assis) ou "Miserere" (diálogo bíblico entre o homem e Deus, no qual o livre-arbítrio é a expressão teológica da crença narcisista na auto-suficiência).
A segunda parte, "Estrutura", traz textos mais próximos da crônica, do fluxo de consciência e da metalinguagem -como "Biografia", que ironiza uma crítica que pacifica o caráter perturbador da invenção recorrendo a causalidades entre vida e obra dos autores.
Já a última seção, "Sentido (A Falta de)", inclui os contos de maior densidade psicológica.
Em "Não É Bem Assim", a ruptura entre dois amantes, por causa da resistência do narrador a casar e ter filhos, conduz a uma mirabolante reflexão sobre a nova ferida narcísica que a genética impõe ao homem, reduzindo-o a um "aglomerado de células somáticas", cuja função é ser "veículo para a propagação do DNA".
E, em "Conto Infantil", o protagonista é assolado pelas imagens da mãe morta, cuja presença simbólica ele deseja assassinar. Nesse jogo de duplos entre sonho e realidade, vida e morte, loucura e sanidade, o enclausuramento em si mesmo é expressão patológica de um narcisismo para o qual uma literatura como a de Mario Sabino, com suas múltiplas formas de decompor o mecanismo das representações interiores, pode ser um antídoto.


O Antinarciso
    

Autor: Mario Sabino
Editora: Record
Quanto: R$ 23,90 (112 págs.)


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